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Fausto

11. Filosofia

Fausto tenta explicar a sua visão do mundo, mas os discípulos não o entendem.
[ilustração: Bruegel (1525-1569). A Queda dos Anjos Rebeldes (porm.).
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«O mundo é dentro dum sonho um outro sonho em que sonhados são os sonhadores.»
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                [VICENTE]:

Todos, oh mestre, têm horror à morte...

                FAUSTO:

Ah não me ofendas com palavras vãs

O horror do pensamento. Ninguém

Como eu teve esse horror, nem poderá

Nas veias e na alma e no sangue

Tê-lo tão íntimo, tão internado

Tão feito um comigo.

                                Ah,

São as primeiras, únicas palavras

Em que a outro mostrei parte do ser.

Tu não as compreendeste, nem podias,

Nem nunca poderás. Tenta esquecer...

Nunca mais me ouvirás falar assim...

Estava ainda só comigo n'alma

E falava comigo respondendo-te.

Mas dize-me a que vinhas.

                [VICENTE]:

                                        Vinha... eu...

Eu vinha... ah... eu vinha procurar-vos

Para falar... nada... Já me retiro.

Estais febril, mestre, sim, sim, vejo bem

E os vossos olhos brilham não sei como,

Que...

                FAUSTO:

Dize.

                [VICENTE]:

        Que...

                FAUSTO:

       O quê?

                [VICENTE]:

        Que me apavora.

                FAUSTO:

Escuta, aproxima-te, é a primeira

Vez que direi o que te digo. Tu

Não compreenderás talvez ainda,

Nem nunca... a essência do que digo

Nunca, ai nunca. Escuta-me Vicente,

São as últimas palavras que direi.

Não compreendes isto,

Não tomes susto. Escuta.

                                        O mundo

Encerra um sonho como realidade

E em cada seu fragmento — não me entendes (

Vive todo.

Interpenetração de (...)

E complexos mistérios desconhecidos.

As figuras de sonho não conhecem

O sonho (...) de quem são figuras,

Porque o mundo não só é (...) sonhado

Mas é dentro dum sonho um outro sonho

Em que sonhados são os sonhadores

Também. Tu compreendes?

                [VICENTE]:

                                        Vagamente.

                FAUSTO:

Possas tu sempre assim compreender

Como todos na terra que existiram

Menos um.

                [VICENTE]:

                Cristo?

                FAUSTO:

                           Cristo? Quem é Cristo?

Ah ri-te, ri-te desta distracção,

Desta pergunta minha, de alheado

Que ando do meu próprio ver e ouvir

Feito. Deixemos isto, pois Lembra-me

Uma cousa a que podes responder.

Diz-me que pensas

Do orgulho? De imperadores, reis

E príncipes da terra e seu orgulho?

Que pensas?

                [VICENTE]:

                        Eu? Do orgulho? Julgo-o vão.

                FAUSTO:

Todo o orgulho vão?

                [VICENTE]:

                                Todo o orgulho.

Assim mo ensinaram, assim creio

E assim razoável me parece.

                FAUSTO:

Mas o orgulho do génio, desse que sente

Retratar-se no espírito soturno

A ilusão de existir definida

Em mistérios e abismos e visões?

E o desse?

                [VICENTE]:

                O talento é dom de Deus.

Não sei que orgulho haverá em tê-lo

Como se fora cousa produzida

Pelo próprio. Por que quereis saber?

                FAUSTO:

Eu? Nada. O talento é dom de Deus.

E o orgulho não é dom de Deus?

                [VICENTE]:

Por, parecendo humano que é nascido

Da vã contemplação, como direi?

Da maravilha de si mesmo. Eu,

Se fosse talentoso — não o sou (

A Deus diariamente o agradecia.

Dar-me-ia prazer, mas não orgulho.

                FAUSTO:

Bem agradeço-te. Deixa-me agora.

Preciso de pensar Lembrou-me súbito

Uma cousa... Logo te verei.

Continuaremos.

                [VICENTE]:

                        Mestre, até então.

                FAUSTO: (só)

Em todo os raciocínios em que vivo

Aquele (...) nunca fizera.

Como aquelas palavras me feriram!

Sim, por que ter orgulho — para quê?

Mas — ah, quantos problemas e mistérios

Essas palavras dum inconsciente

Me abrem no pensamento. Que intenso

Atropelar de (...) e teorias

De raciocínios, conclusões d'espírito

Mal geradas dentro em mim,

Não poder apagar este tormento;

Não poder despegar-me deste ser;

Não poder esquecer-me desta vida...

s.d.

Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.

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1ª versão inc.: “Primeiro Fausto” in Poemas Dramáticos. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de Eduardo Freitas da Costa.) Lisboa: Ática, 1952 (imp.1966, p.134).