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Fausto

20. Morte

Agora, que nada mais pode querer, não teme já a morte. E ela vem.
[ilustração: Agostino de Musi (1490-1531?). «Os Esqueletos» (porm.).
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«Ambição vaga de fechar os olhos e vaga esperança de não mais abri-los.»
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Vejo que delirei.

Nem delirando fui feliz; mas fui-o

Apenas para obter esse cansaço

Que não obtive outrora: desejar

A morte enfim. Eis a felicidade

Suprema: recear nem duvidar,

Mas estar de prazer e dor tão lasso

A nada já sentir, longe de mim

Como era antigamente: e também longe

Dos homens do (...) natural

Estranho! com saudade só me lembro

Do meu grão tempo de infelicidade,

Saudade não, e um orgulho (que é só

O que dela me resta hoje) e não quero

Àquele tempo regressar. Já nada quero!

Caí e a queda assim me transformou!

Saudosamente ainda me lembra

D'ultra acordado estar, mas a queda

Tirou já o desejo de voltar

(Se pudesse). Deixou só um sentimento

De desejar eterna quietação

Ânsia cansada de não mais viver;

Ambição vaga de fechar os olhos

E vaga esperança de não mais abri-los.

Meu cérebro esvaído não lamenta

Nem sabe lamentar. Tumultuárias

Ideias mistas do meu ser antigo

E deste, surgem e desaparecem

Sem deixar rastos à compreensão.

E ainda com elas, sonhos que parecem

Memórias dessa infância, dessas vozes

Já deslembradas, vãs, incoerentes,

Amargas, vãs desorganizações

Que nem deixam sofrer. Vem pois, oh Morte!

Sinto-te os passos! Grito-te! O teu seio

Deve ser, suave e escutar o teu coração

Como ouvir melodia estranha e vaga

Que enleva até ao sono, e passa o sono.

Nada, já nada posso, nada, nada...

Vais-te, Vida. Sombras descem. Cego. Oh Fausto!

                                (Expira)

s.d.

Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.

 - 179.

1ª versão inc.: “Primeiro Fausto” in Poemas Dramáticos. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de Eduardo Freitas da Costa.) Lisboa: Ática, 1952 (imp.1966, p.129).