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Fausto

16. Orgia

Embebeda-se e, por fim, queima a taberna. E todos pela estrada fora dançam.
[ilustração: Fausto na Taberna. Gravura.
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«Isto de vida é a gente gozar e após gozar gozar mais, entendeste?»
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                [FRANZ]:

Isto de ser soldado

Tem uma filosofia obrigatória

Como o pé ao fim da perna. Hoje vivo

Amanhã morto... D'aqui se conclui

Que sendo o vivo vivo enquanto é vivo

É morto é morto.

                OUTRO:  

Tira-lhe o cangirão da mão oh Vesgo

                [FRANZ]:

Ia eu dizendo — deixa o cangirão! —

Que quem hoje vive e que não sabe

Se amanhã viverá é viver hoje

Por amanhã. Como isto de amanhã

Nem é aí um dia, mas é muitos

Enquanto a gente vive é ir vivendo

Em cada dia como se ele fosse

Uma vida completa

—                             Bravo o vinho

Faz a este pensar. O que diria

O teu tio bêbado, oh Francisco?

                [FRANZ]:

                                                   É esta

A tal filosofia do soldado

A qual, senhores, a pensarmos bem

É a de toda a vida. E não é pouco.

                FAUSTO:

Dá-te o vinho razão, amigo. O homem

É um soldado. E este com certeza

De morrer no combate de amanhã.

Portanto a tal (...) filosofia

Que entre goles aí me gaguejaste

É mais certa que pensas, meu amigo.

É viver hoje que amanhã na vida

Não há talvez — é certo — vem a morte.

Bebo à saúde aqui do nosso amigo!

                TODOS:

À saúde do Franz!

                [FRANZ]:

                        Vá que o mereço!

Mas olha lá: dá cá o cangirão

Então só eu não beberei à minha?

                OUTRO:

Vá que é beber-lhe bem.

                                        Não é por ser

Minha saúde. É só por ser vinho

Minha mãe! Minha triste vida!

Minha sorte!

                (Chora)

                OUTRO:

        O que é isso?

                [FRANZ]:             

                                O cangirão

Não tem mais vinho! Caguei vida. Rei e corno!

Um rei corno — isso sabe a não sei o quê!

E o cangirão já não tem quase nada

O rei corno e eu sem vinho.

                (cai para debaixo da mesa)

                FAUSTO:

Arre que besta! Mas tem sua graça!

Está abraçado ao cangirão

Diz que é uma rainha.

                [FRANZ]:

                                Dá-me cá mais um gole

Que isto de leito e corpo de rainha

Não é com quatro goles que se entende.

Um rei corno — isso é grande! Alma danada

Onde é que me escondeste ó cangirão?

                (de debaixo da mesa)

Já o rei é corno!

                FAUSTO:

                        Lá quanto a Deus

Quando o sinto a amargar-me a boca muito

Faço isto

                (bebe)

        Tomo um gole. E vai p'ra baixo.

                TODOS:

Viva Fausto! Eia, viva! viva! viva!

                FRITZ:

Mas a vida rapaz?

                FAUSTO:

                                Caguei p'rá vida!

                FRITZ:

Toma! É assim rapaz! Canta-me dessas!

És cá dos meus, apesar de doutor...

                TODOS:

Doutor? Isto Doutor? Viva o Doutor!

                FAUSTO:

Morra o doutor e viva Fausto! É assim!

                TODOS:

Bravo. Morra o doutor e viva Fausto!

                FRANZ:

...Revolta... Não compreendo bem

Passa-me o cangirão que já te entendo.

Sem mais dois goles não percebo nada.

                FAUSTO:

Já percebes

Estupor avinhado? Já me entendes?

Isto de vida — ouve — é sentir tudo

Meter o agradável num só dia

Como o pé num chinelo. Deixa lá

O cangirão e ouve... Isto de vida

É a gente gozar e após gozar

Gozar mais, entendeste?

                FRANZ:

                                        E depois disso?

                FAUSTO:

Depois disso gozar mais ainda.

— Deixa-o lá. Só tem força p'ra beber.

Não vê já mais que o olho do gargalo.

                FRITZ:

Que é isso?

                FRANZ:

Quero piscar o olho. Já me custa!

Arre! Ou fecho ambos ou então nenhum.

Bebendo mais um gole isto já passa...

                FAUSTO:

Eu queria obter

Uma enormidade de sensações

Daquelas mais intensas que nós temos

arrepio, calor, etcetra e tal...

Isso como diz o matemático

Elevado ao infinito e num momento

Aqui é que é tentar chegar...

                UM:

«Arrepio, calor, etcetra e tal»

O que não se diz fica por dizer.

s.d.

Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.

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