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Fausto

14. Consciência

Procura então um “filtro” que o faça perder a consciência, e para obtê-lo mata...
[ilustração: Emerick Marcier. «Le courage ne compte point...». in Presença, s. 2, nº 1. Coimbra: Nov. 1939.
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«Ancião, não podes tu arranjar-me um remédio para a vida? Quero vivê-la sem saber que a vivo.»
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                 FAUSTO:

Febre! Febre! Estou trémulo de febre

E de delírio, e ainda assim é grato

Tudo isto a não sei que se passa

Sem propósito de passar e... não, não, não...

Fiquei fingindo que fujo... Fugirei...

Onde estou? O que foi? que faço aqui?

Arde-me a alma toda, arde-me arde

Como uma cousa que arde.

                (foge de casa)

Ancião, não podes tu

Arranjar-me um remédio para a vida?

Quero vivê-la sem saber que a vivo,

Como tu vives... Corta-me o sorriso

Ou te apunhalo! De que te ris? Não rias!

Dá-me já, dá-me, dá-me filtros ou (...)

Com que eu me esqueça.

                (estende a mão)

                                        Dá cá, não importa

Falar Tudo é inútil.

                (arranca-lhe o frasco da mão)

Atordoar-me-á isto a alma toda

Toda até dentro, muito dentro, velho?

                VELHO:

Não te compreendo, mas se é esqueceres

Que queres, bebe.

                FAUSTO:

                                Quero, quero, vamos,

Esqueçamo-nos. Tens algo de mais forte

Para mais do que esquecer; depressa, diz.

                VELHO:

Mal te compreendo, mas não tenho.

                FAUSTO:

                                        Este

Quer (...) fins.

                (bebe sofregamente)

                E dormirei, ó velho,

Acabará em mim parte de mim

E viverei morto para viver

                (cai no chão)

                VELHO:

        Estranha e horrível criatura!

O que de temor me faz. Todas espécies

De homens conheço, por ciência

Sei ler os vícios íntimos e os crimes

Nos olhares. Mas este... Não é vício

Nem crime, nem tristeza, nem parece

Propriamente pavor, o que obscurece

Como uma escuridão de dentro d'alma,

Toda a vida e expressão de sua face.

E essas palavras de que usa «esquecer

A vida», «mais do que esquecer» «em

Acabará então parte de mim»

Que significam? Não sei, mas sinto

Que condizem secreta e intimamente

Com esse íntimo ser que eu não conheço.

Qualquer que seja essa desgraça, estranho,

Dorme e ou esqueça ou aconteça em ti

Isso que semelhante ao esquecer

Desordenadamente me disseste

No teu intimo (...) desejar.

Dorme, e que o filtro opere no silêncio

Da tua alma, obra interior de paz

E que ao descerrares para mim os olhos

Eu lhes veja a expressão já transmutada

Para compreensível e humana

Expressão de um humano sentimento.

                (Vai para o levantar mas retrai-se)

Não; dorme onde caíste e que o filtro

Sem sonho ou (...) de alteração

Te adormeça a existência intimamente

E ao escuro desejo que tu tens

                (exit)

FAUSTO:

Eu sou outro que os homens, ó ancião,

O teu filtro de paz e esquecimento

Não me faz esquecer e só a sombra

De uma possível paz me entrou n'alma.

Para a paz que eu queria esta que tenho

É como archote para a luz do sol.

Intimamente nada se parece.

Paralisaste em mim a engrenagem

Do pensamento e sentimento antigos

Mas quebrados ficaram-me visíveis

E inesquecidos n'alma. Sou demais

Em consciência para os filtros frágeis

De que o teu tosco engenho te fez sábio.

Não tornarei, eu sinto-o, a sentir

O que sentia antigamente. Foi-se

Não sei como, o interior do meu ser

Com suas intuições, mas não se foi

A memória terrível do horror

Da minha vida antiga, perto e longe

Já do que eu sou, nem o que o uso fez

Ao sentimento e ao pensamento antigos;

Ainda os tenho comigo. Fica com eles

A memória presente do terror. Sou o que era, velho.

Nas cinzas do meu ser ainda há calor

Para que o fogo lembre.

                VELHO:

                                Esfriarão.

                FAUSTO:

Não o sinto possível. Há ainda

Memória e consciência de existir

Por demais em minha alma. O teu filtro

Não foi feito para entes como eu.

Entes? Não que como eu, só eu.

                VELHO:

                                        Virá

                VELHO:

Dentro em breve o sossego.

                FAUSTO:

                                Por que o dizes?

                VELHO:

A outros veio!

                FAUSTO:

                        A outros, mas que outros

Se assemelham a mim, ó velho estulto?

Alma vazia cheia de licores!

Mas de que serve injuriar-te? Tu

Não serás por injúrias acordado

Para a compreensão.

                (Soergue-se)

Estranho sentimento. Como que a alma

Corporeamente me é pesada! A vida

Como que está atordoada e lenta...

Mas tenho, ó velho, consciência disso!

Teu filtro, miserável, é humano!

É para entes humanos que foi feito.

Inda me lembro bem que eu não o sou.

                (pausa)

Olha pr'a mim! Que tenho no olhar

Como pareço ser?

                VELHO:      

                        Doente, triste

E como que quem sente vago pavor...

                FAUSTO:    

Maldita a ideia que te faz tocar

No que eu não posso mais sentir, mas posso

Apavorar-me de já ter sentido

E lembrar-me. Não fales mais. Eu vou...

                (Pondo-se de pé)

Eu vou não sei onde...Como me treme

Com que debilidade e sentimento

De estar mudado o corpo todo. Velho,

Adeus, quisera ter achado em ti

O que em ti não podia ter achado.

Os teus remédios nada valem. Eu

Deveria ao pedir tê-lo sabido;

Mas... Não tens outro, diz-me... Tu que filtros

Possuis, não tens venenos mais subtis

Para a existência?

                VELHO:

                        Tu bebeste aquele

Que eu de mais forte tinha, e que eu quisera

Não te dar. Arrancaste-mo da mão.

Talvez não vejas quanto estás melhor...

                FAUSTO:

Velho, eu não erro com o pensamento.

Sei como estou. Não estou como quisera

Que me fizeras estar.

                VELHO:

                                Há um filtro

Diferente daquele que tomaste;

Diverso na intenção com que obra n'alma,

Mas parecido no fazer esquecer.

                FAUSTO:

Como diverso na intenção?

                VELHO:

                                        Em vez

De apagar, (...), adormecer,

Faz, com terrível excitar da vida,

Nascer n'alma um conflito de desejos

Um desejo de tudo possuir,

De tudo ser, de tudo ver, amar,

Gozar, odiar, querer e não querer,

Reunir vícios e virtudes — tudo

Como que na ânsia férvida dum trago

Da taça de existir.

                FAUSTO:

                                E tu...

                VELHO:                   

                                        Não fui eu

Quem concebeu ou fabrica o filtro

Nem há mais (...) do que para um homem.

                FAUSTO:

Tu vendes-mo... Ah, não, que eu nada tenho

Nem sei se tive ou poderia ter.

Tu dás-mo, velho. Não te servirá

De nada. Talvez esse filtro dê

O esquecimento (...) à minha alma.

Inda que a decepção me cause um vago

Desejo inquieto e como que inquerente

Entre um querer e um não querer, sendo ambos

E nenhum. Torna a ele. Quem o fez?

Porque o fez? Onde o tens? Repete mesmo

O que de seus efeitos me disseste.

E esses efeitos tê-los-á; repete,

Quero que ainda me decida mais

A pedir-to e a usá-lo. Por enquanto

Sou para ele a própria indecisão.

                VELHO:

(...)

                FAUSTO:

Que me decida ou não a beber dele

Esse filtro a ti de nada serve.

Dá-mo pois.

                VELHO:

                   Não to dou.

                FAUSTO:

                                     O filtro, velho.

Não me (...); o filtro.

                VELHO:

                                Não to dou.

                FAUSTO:

O filtro.

                VELHO:

            Não to posso dar.

                FAUSTO:

                                       O filtro.

                VELHO:

Para que avanças? Eu que mal te fiz?

                FAUSTO:

O filtro; dá-me o filtro.

                VELHO:

                                Mas não posso.

                FAUSTO:

Velho, repara em mim. Há na minha alma

Uma ira calma e fria! Foge que ela

Na acção te mostre o que é.

                VELHO:

                                        Não posso dar-te,

Em verdade to digo, o filtro. Eu

Fiz-te o bem que pude; porque então

Avançando assim calmo para mim

No horror de qualquer (...) intenção

Te vejo o mesmo sempre? Poupa-me isso

Terrível que há em ti e que não trais

Em movimento ou vaga intimidade

Do olhar.. Piedade, piedade...

Piedade, senhor! Eu dou-te o filtro

Eu dou-te o filtro. Piedade eu dou.

                (Fausto levanta do punhal e fells him)

                (após matar)

                FAUSTO:

Nem sinto horror, nem medo, ou dor, ou ânsia

Nem qualquer forma de estranheza sinto

Pelo que fiz por mais que tente querer

Sentir, e pelo próprio pensamento

De o dever sentir à força ter

Uma dor, um remorso, um sentimento.

Nada... Vejo, sinto, e vejo apenas

Como qualquer cousa natural

Visse, sem que devesse invocar

Sentimento (...) algum. Por mais

Que queira pensar-me a conceber

Quanto é estranho, e horroroso,

O que fiz, não me posso humanizar

Ao ponto de (...)

Por mais que a mera vista me convença

De que matei, por mais que tente

Fitar com a alma o corpo e o derramado

Sangue que vejo, nega-se-me o ser

A mais do que a olhar e só olhar.

É uma alma morta ante um corpo morto.

Compreendo bem o que sentir eu devo

Mas não consigo mesmo a imaginar-me

Sentindo-o. Estranho! Nem sequer evoco

Por sentimentos de quanto é de horror

A morte, um ente morto, e o mistério

Nisto tudo. Sim, sinto-lhe o mistério

Mas este sentimento de mistério

Não se me liga a um sentimento

Que liga esse corpo a mim que fiz

O que de mistério está ali.

Tremo ao sentir quanto é mistério a morte;

Mas na alma desligado está

Com completa separação e nítida

De sentimento algum que me deixasse

O ser na ânsia de inquirir.

                (pausa)

Visto porém, que nada sinto, nada,

Acabe este mesmo reflectir

Mais que infrutífero de sentimento,

Porque mais frio cada vez me sinto

Ao perceber que nada sei sentir

Nem estranheza sinto

Nem estranheza de não ter estranheza

Nem estranheza mesmo

De não sentir por mais que eu queira

Fazer crer que devia sentir estranheza.

Procuremos o filtro.

s.d.

Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.

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1ª versão inc.: “Primeiro Fausto” in Poemas Dramáticos. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de Eduardo Freitas da Costa.) Lisboa: Ática, 1952 (imp.1966, p.137).