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Fausto

18. Cepticismo

A busca vã deixa-o só e vazio, consciente de nada ser.
[ilustração: Piranesi (1720-1778). Cena de prisão (porm).
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«Dizer «Apenas sei que nada sei» não é compreender.»
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Nem digam não, que o antigo cepticismo

Chegou aqui. Dizer «Apenas sei

Que nada sei» não é compreender

Isto: que a verdade certa está

Além do ser e do não ser, as duplas

Formas do erro mais simples do pensar.

A vazia e profunda negação

Socrática é o exterior entre-sonhado

Da minha negação calma e profunda.

Toda a frase, expressão, pode partir

D'alma ou dos lábios, e (...) dentro d'alma

Dos lábios d'alma, ou d'alma da alma. Esta

Diferença contém a diferença

Entre o vazio cepticismo antigo,

Mudo adivinhador não compreendendo

A Força toda do que adivinhou...

Entre isto e o meu pensar. Cheguei aqui.

Nem daqui sair quero, nem queria

Aqui chegar. Mas aqui estou e fico.

Perdida ilusão, desilusão

Tendo o sonho e o real por igualmente

Falsos, e por certo tendo apenas

A certeza e o orgulho de aqui estar.

Pelos caminhos (...) da vida

Desdenhando leituras, procurei

Só a verdade — e a verdade é esta.

                (uma pausa)

Não sei por quê — não sei... Antes quedasse

Mesmo na dúvida. A desolação

Onde hoje estou — dupla — de nada achar

E de estar só em nada ter achado —

Apavora-me. Há alegria na cidade,

Há tristeza no campo solitário

E no plaino desolado. Mas aqui.

No alto píncaro do mais alto monte,

Onde ninguém subiu nem subirá,

Há um horror intenso.

                (Levanta-se tremendo de horror)

Rezar não poder, sonhar, dormir, sim  iludir-me.

Voltar ao erro. Voltar ao erro. Nunca!

Não posso já dizer «Meu Deus». Ah, e era

Doce dizê-lo! Ah a tristeza imensa

De estar além da lágrima e do riso

Como eu. Não poder rir, chorar, assim

Como outros homens.

Sim, mas valho mais!

Para quê valer mais?

Horror! Horror!

Mistério, vai-te, esmagas-me! Ah partir

Esta cabeça contra aquele muro

E tombar morto. Mas a morte, a morte!

Ah como a temo! Para onde fugir?

Na vida nem na morte tenho abrigo.

Maldito seja... Quem? Quem fez o Mal,

Este que sinto! Ah, mas já nem posso

Amaldiçoar. O Bem e o Mal são

Formas de erro. Nem amaldiçoar!

Ah o horror, o horror sinto ao vazio

À roda de mim. Eu já não posso

Amaldiçoar, nem ora dirigir-me

A potências ou forças, pois já sei

Que a verdade está além do concebível...

Ah, horror supremo. Nem crer, nem descrer,

Nem rir, nem chorar, morte nem vida

Desejar.

                (Vê um frasco em cima da mesa)

Ah dormir, talvez dormindo

Esqueça tudo

                (Tira o frasco e deita com cuidado)

Não haja eu, que em (horror)

Dormir cuidando, fosse atingir

O temido eterno sono! Só a ideia...

Não mais. Basta. Está bem. Bebamos.

(Bebe. Cambaleia. Vai à cadeira e aí cai inerte, sentado inclinado para trás)

s.d.

Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.

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1ª versão inc.: “Primeiro Fausto” in Poemas Dramáticos. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de Eduardo Freitas da Costa.) Lisboa: Ática, 1952 (imp.1966, p.131).