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Heteronímia

7. Realidade

Mestre e discípulos conversam sobre o conceito de realidade.
[ilustração: Horóscopo de Alberto Caeiro, feito por Fernando Pessoa.
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«Uma sombra é real, mas é menos real que uma pedra»
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Uma das conversas mais interessantes, em que entrou o meu mestre Caeiro, foi aquela, em Lisboa, em que estávamos todos os do grupo e por acaso de falar se discutiu o conceito de Realidade.

Se não me engano ao lembrar, essa parte da conversa começou por uma observação lateral do F[ernando] P[essoa] a qualquer coisa que se havia dito. A observação foi esta: «No conceito de Ser não cabem partes nem gradações; uma coisa é ou não é.»

«Não sei se será bem assim», objectei eu. «Há que analisar esse conceito de ser. Parece-me que eie é uma superstição metafísica, pelo menos até certo ponto...»

«Mas o conceito de Ser nem é susceptível de análise», respondeu o FP. «A sua indivisibilidade começa aí.»

«O conceito não será», repliquei, «mas o seu valor é.»

O FP respondeu: «Mas o que é o 'valor' de um conceito independentemente do próprio conceito? Um conceito, isto é, uma ideia abstracta não é susceptível de mais nem menos, e portanto não é susceptível de valor, que é sempre uma questão de mais ou menos. Pode haver valor no uso ou na aplicação, mas esse valor é do uso ou da aplicação e não do conceito em si mesmo.»

Nisto interrompeu o meu mestre Caeiro, que estivera ouvindo muito com os olhos esta discussão transpontina. «Onde não pode haver mais nem menos não há nada.»

«Ora essa, porquê?» perguntou o F.

«Porque tudo quanto é real pode ser mais ou menos, e a não ser o que é real nada pode existir.»

«Dê um exemplo, ó Caeiro», disse eu.

«A chuva», respondeu o meu mestre. «A chuva é uma coisa real. Por isso pode chover mais e pode chover menos. Se v. me disser: 'esta chuva não pode ser mais e não pode ser menos’, eu responderei, 'então essa chuva não existe'. A não ser, é claro, que v. queira dizer a chuva tal como é nesse momento: essa realmente é a que é e se fosse mais ou menos era outra. Mas eu quero dizer outra coisa...»

«Está bem, compreendi perfeitamente», atalhei eu.

Antes que eu prosseguisse, para dizer não sei já o quê, o FP voltou-se para Caeiro: «Diga-me v. uma coisa» (e apontou com o cigarro): «como é que v. considera um sonho? Um sonho é real ou não?»

«Considero um sonho como considero uma sombra», respondeu Caeiro inesperadamente, com a sua costumada prontidão divina. «Uma sombra é real mas é menos real que uma pedra. Um sonho é real - senão não era sonho - mas é menos real que uma coisa. Ser real é ser assim.»

O FP tem a vantagem de viver mais nas ideias do que em si mesmo. Esqueceu-se não só de que estava argumentando, mas até da verdade ou falsidade do que ouvia: entusiasmaram-no as possibilidades metafísicas desta teoria súbita, []

«Isso é uma ideia admirável! E é originalíssima! Nunca me tinha ocorrido» (E este «nunca me tinha ocorrido»?, tão ingenuamente sugeridor da natural impossibilidade de ocorrer a outrem qualquer coisa que não tivesse já ocorrido a ele, Fernando?)... «Nunca me tinha ocorrido que se pudesse considerar a realidade como susceptível de graus. Isso, de facto, equivale a considerar o Ser não como uma ideia propriamente abstracta mas como uma ideia numérica...»

«Isso é um bocado confuso para mim» hesitou Caeiro «mas parece-me que sim, que é isso. O que eu quero dizer é isto: ser real é haver outras coisas reais, porque não se pode ser real sozinho; e como ser real é ser uma coisa que não é essas outras coisas, é ser diferente delas; e como a realidade é uma coisa como o tamanho ou o peso - senão não havia realidade - e como todas as coisas são diferentes, não há coisas iguais em realidade como não há coisas iguais em tamanho e em peso. Há-de haver sempre uma diferença, embora seja muito pequena. Ser real é isto.»

«Isso ainda é mais curioso!» exclamou o FP. «V. então considera a realidade como um atributo das coisas; assim parece ser, visto que a compara ao tamanho e ao peso. Mas diga-me uma coisa: qual é a coisa de que a realidade é um atributo? O que é que está por trás da realidade?»

«Por trás da realidade?» repetiu o meu mestre Caeiro. «Por trás da realidade não está nada. Também por trás do tamanho não está nada, e por trás do peso não está nada.»

«Mas se uma coisa não tiver realidade não existe, e pode existir sem ter tamanho nem peso...»

«Não se for uma coisa que por natureza tenha tamanho e peso. Uma pedra não pode existir sem tamanho; uma pedra não pode existir sem peso. Mas uma pedra não é um tamanho e uma pedra não é um peso. Também uma pedra não pode existir sem realidade, mas a pedra não é uma realidade.»

«Está bem», respondeu o F., entre impaciente, apanhante de ídeias incertas, e fugir-lhe-o-chão. «Mas quando v. diz 'uma pedra tem realidade' v. distingue pedra de realidade.»

«Distingo: a pedra não é realidade, tem realidade. A pedra é só pedra.»

«E o que quer isso dizer?»

«Não sei: está ali. Uma pedra é uma pedra e tem que ter realidade para ser pedra. Uma pedra é uma pedra e tem que ter peso para ser pedra. Um homem não é uma cara mas tem que ter cara para ser homem. Eu não sei porque isto é assim, nem sei mesmo se há porquê para isto ou para qualquer coisa...»

«V. sabe, Caeiro», disse o F. reflectivamente: «v. está a elaborar uma filosofia um tanto ou quanto contrária ao que v. pensa e sente. V. está a fazer uma espécie de kantismo seu - criando uma pedra-noumenon, uma pedra-em-si. Eu explico, eu explico.. .» E passou a explicar a tese kantiana e como o que Caeiro dissera se conformava mais ou menos com ela. Depois indicou a diferença; ou o que, a seu ver, era a diferença: Para Kant esses atributos - peso, tamanho (não realidade) - são conceitos impostos à pedra-em-si pelos nossos sentidos, ou, melhor, pelo facto de que observamos. V. parece indicar que esses conceitos são tão coisas como a próspria pedra-em-si. Ora isso é que torna a sua teoria difícil de compreender, ao passo que a de Kant, verdadeira ou falsa, é perfeitamente compreensível.»

O meu mestre Caeiro ouvira isto com a maior atenção. Uma ou outra vez piscou os olhos como para sacudir ideias como sonos. E, depois de pensar um bocado, respondeu.

«Eu não tenho teorias. Eu não tenho filosofia. Eu vejo mas não sei nada. Chamo a uma pedra uma pedra para a distinguir de uma flor ou de uma árvore, enfim de tudo quanto não seja pedra. Ora cada pedra é diferente de outra pedra, mas não é por não ser pedra: é por ter outro tamanho e outro peso e outra forma e outra cor. E também por ser outra coisa. Chamo a uma pedra e a outra pedra ambas pedras porque são parecidas uma com a outra naquelas coisas que fazem a gente chamar pedra a uma pedra. Mas na verdade a gente devia dar a cada pedra um nome diferente e próprio, como se faz aos homens; isso não se faz porque seria impossível arranjar tanta palavra, mas não porque fosse erro...»

O FP atalhou: «Diga-me uma coisa, para esclarecer tudo: v. admite uma ‘pedreidade', por assim dizer, assim como admite um tamanho e um peso? Assim como v. diz esta pedra é maior - isto é, tem mais tamanho - que aquela, ou 'esta pedra tem mais peso que aquela', dirá v. também 'esta pedra é mais pedra do que aquela'? ou, em outras palavras, 'esta pedra tem mais pedreidade que aquela'?»

«Sim, senhor» respondeu logo o meu mestre. «Eu estou pronto a dizer, 'esta pedra é mais pedra que aquela'. E estou pronto a dizer isto se ela for maior que a outra, ou tiver mais peso, porque o tamanho e o peso são necessários a uma pedra para ela ser pedra... ou, principalmente, se ela tiver mais completamente que outra todos os atributos, como v. lhes chama, que uma pedra tem que ter para ser pedra.»

«E o que chama v. a uma pedra que v. vê em sonho?» e o F. sorriu.

«Chamo-lhe um sonho», disse o meu mestre Caeiro, «Chamo-lhe um sonho de uma pedra».

»Compreendo» e o F. acenou. «V[ocê] - como se diria filosoficamente - não distingue a substância dos atributos. Uma pedra é uma coisa composta de um certo número de atributos - os necessários para compor aquilo a que se chama uma pedra - e de uma certa quantidade de cada atributo, que é o que dá à pedra determinado tamanho, determinada dureza, determinado peso, determinada cor, que a distinguem de outra pedra, sendo contudo ambas elas pedras porque têm os mesmos atributos, embora em quantidade diferente. Ora isto equivale a negar a existência real da pedra: a pedra passa a ser simplesmente uma soma de coisas reais…»

«Mas uma soma real! É a soma de um peso real e de um tamanho real e de uma cor real e assim por diante. E por isso é que a pedra, além do tamanho, do peso, etc., tem realidade também... Não tem realidade como pedra: tem realidade porque é uma soma de atributos, como v. lhes chama, todos reais. Como cada atributo tem realidade, a pedra tem-na também.»

«Voltemos ao sonho», disse o F. «V. a uma pedra que vê em sonho chama um sonho, ou, quando muito, um sonho de uma pedra. Porque diz v. 'de uma pedra'? Porque emprega a palavra 'pedra'?»

«Pela mesma razão que v., quando vê o meu retrato, diz 'isto é o Caeiro' e não quer dizer que seja eu em carne e osso».

Desatámos todos a rir. «Compreendo e desisto», disse o Fernando a rir connosco. Les dieux sont ceux qui ne doutent jamais. Nunca compreendi tão bem a frase de Villiers de l'Isle Adam.

Esta conversa ficou-me gravada na alma; creio que a reproduzi com uma nitidez que não está longe de taquigráfica, salvo a taquigrafia. Tenho a memória intensa e clara que é um dos característicos de certos tipos de loucura. E esta conversa teve um grande resultado. Está claro que foi inconsequente como todas as conversas, e que seria fácil provar que, perante uma lógica rigorosa, só quem não falou se não contradisse. Nas afirmações e respostas, interessantes como sempre, do meu mestre Caeiro pode um espírito filosófico encontrar reflexos do que na verdade seriam sistemas diferentes. Mas, ao conceder isto, não creio nisto. Caeiro devia estar certo e ter razão, ainda nos pontos em que a não tivesse.

De resto, esta conversa teve um grande resultado. Foi nela que o António Mora bebeu a inspiração para um dos capítulos mais assombrosos dos seus Prolegómenos - o capítulo sobre a ideia de Realidade. Em todo o decurso da conversa, foi o António Mora o único que não disse nada. Limitou-se a ouvir com os olhos parados para dentro as ideias que se tinham estado a dizer. As ideias do meu mestre Caeiro, expostas nesta conversa com o atabalhoamento intelectual do instinto, e, portanto de um modo forçosamente impreciso e contraditório, foram convertidas, nos Prolegómenos, num sistema coerente e lógico.

Não pretendo diminuir o valor realíssimo de António Mora. Mas, assim como a base de todo o seu sistema filosófico nasceu, segundo ele mesmo o diz com orgulho abstracto, da simples frase de Caeiro, «A Natureza é partes sem um todo», assim uma parte desse sistema - o maravilhoso conceito da Realidade como «dimensão», e o conceito derivado de «graus de realidade» - nasceu precisamente desta conversa. O seu a seu dono, e tudo ao meu mestre Caeiro.

25-2-1931

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

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«Notas para a recordação do meu mestre Caeiro»