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Heteronímia

21. Bernardo Soares

Soares é um semi-heterónimo de Pessoa e escreve o Livro do Desassossego.
[ilustração: Bartolomeu dos Santos. Lisboa à noite.
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«Cada pessoa é apenas o sonho de si-próprio. Eu nem isso sou.»
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Quero que a leitura deste livro vos deixe a impressão de terdes atravessado um pesadelo voluptuoso.

……

Pulverização da personalidade: não sei quais são as m[inhas] ideias, nem os m[eus] sentimentos nem o meu carácter... Só sinto uma coisa, enq[uan]to a sinto na pessoa visualizada de uma qualquer criatura que aparece em mim. Substitui os meus sonhos a mim-próprio. Cada pessoa é apenas o seu sonho de si-próprio.

Eu nem isso sou.

……

Não soube nunca o que sentia. Quando me falavam de tal ou tal emoção e a descreviam, sempre senti que descreviam qualquer coisa da m[inha] alma, mas, depois, pensando, duvidei sempre. O que me sinto ser, nunca sei se o sou realmente, ou se julgo que o sou apenas. Sou uma personagem de dramas meus.

O esforço é inútil, mas entretém. O raciocínio é estéril, mas é engraçado. Amar é maçador, mas é talvez preferível a não amar. (O sonho, porém, substitui tudo). Nele pode haver toda a noção do esforço sem o esforço real. Dentro do sonho posso entrar em batalhas sem risco de ter morto ou de ser ferido. Posso raciocinar, sem que tenha em vista chegar a uma verdade, a que nunca chegue; sem querer resolver um problema, que nunca resolvo; sem que (...). Posso amar sem me recusarem nem me trairem, nem me aborrecerem. Posso mudar de amada e ela será sempre a mesma. E se quiser que me traia e se me esquive, tenho às ordens que isso me aconteça, e sempre como eu quero, sempre como eu o gozo. Em sonho posso viver as maiores angústias, as maiores torturas, as maiores vitórias. Posso viver tudo isso tal como se fosse da vida; depende apenas do meu poder em tornar o sonho vivido, nítido, real. Isso exige estudo e paciência interior.

Há várias maneiras de sonhar. Uma é abandonar-se aos sonhos, sem procurar torná-los nítidos, deixar-se ir no vago e no crepúsculo das suas sensações. É inferior e cansa, porque esse modo de sonhar é monótono, sempre o mesmo. Há o sonho nítido e dirigido, mas aí o esforço em dirigir o sonho trai o artifício demasiadamente. O artista supremo, o sonhador como eu o sou, tem só o esforço de querer que o sonho seja tal que tome tais caprichos - e ele desenrola-se diante dele assim como ele o desejaria, mas não poderia conceber, sem justificação de fazê-lo. Quero sonhar-me rei... Num acto brusco, quero-o. E eis-me súbito rei dum país qualquer. Qual, de que espécie, o sonho mo dirá... Porque eu cheguei a esta vitória sobre o que sonhar - que os meus sonhos trazem-me sempre inesperadamente o que eu quero. Muitas vezes aperfeiçoo, ao trazê-la nítida, a vida cuja vaga ordem apenas recebera. Eu sou totalmente incapaz de idear conscientemente as Idades Médias de diversas épocas e de diversas Terras que tenho vivido em sonhos. Deslumbra-me o excesso de imaginação que desconhecia em mim e vou vendo. Deixo os sonhos só... Tenho-os tão puros que eles excedem sempre o que eu espero deles. São sempre mais belos do que eu quero. Mas isto só o sonhador aperfeiçoado pode esperar obter. Tenho levado anos a buscar sonhadoramente isto. Hoje consigo-o sem esforço...

A melhor maneira de começar a sonhar é mediante livros. Os romances servem de muito para o principiante. Aprender a entregar-se totalmente à leitura, a viver absolutamente com as personagens de um romance - eis o 1º passo. Que a n[ossa] família e as suas imagens nos pareçam chilras e ingratas ao lado dessas, eis o sinal do progresso.

É preciso evitar o ler romances literários onde a atenção seja desviada para a forma do romance. (...) Não tenho vergonha em confessar que assim comecei. É curioso mas os romances policiais, os (...) [...].

Nunca pude ler romances amorosos detidamente. Mas isto é uma questão pessoal, por não ter feitio de amoroso, nem mesmo em sonhos. Cada qual cultive, porém, o feitio que tiver. Reconheceremos sempre de que sonhar é procurarmo-nos. O sensual deverá, para suas leituras, escolher as opostas às que forem minhas.

Quando a sensação física chegar, pode dizer-se que o sonhador passou além do 1º grau do sonho. Isto é, q[uando] um romance sobre combates, fugas, batalhas, nos deixa o corpo realmente moído, as pernas cansadas... o 1º grau está conseguido. No caso do sensual, deverá ele - sem receber a mensagem mais que mental[mente] - ter uma ejaculação q[uan]do um momento desses chegar no romance.

Depois procurará traduzir tudo isso para mental. A ejaculação, no caso do sensual (que escolho para exemplo, porque é o mais violento e frisante) deverá ser sentida sem se ter dado. O cansaço será m[ui]to maior, mas o prazer é completamente mais intenso.

No 3º grau passa toda a sensação a ser mental. Custa o prazer e custa o cansaço, mas o corpo já nada sente, e em vez dos membros lassos, a inteligência, a vontade [?], ou a emoção é que ficam bambas-frouxas... Quando aqui é tempo de passar para o grau supremo do sonho.

O supremo grau é o construir romances para si próprio. Só deve tentar-se isto q[uan]do se está perfeitamente mentalizado o sonho, como antes disse. Se não, o esforço inicial em criar os romances, perturbará a perfeita mentalização do gozo.

[]

Já educada a imaginação, basta querer, e ela se encarregará de construir os sonhos para si.

Já aqui o cansaço é quase nulo, mental. Há uma dissolução absoluta da personalidade. Somos mera cinza, dotada de alma, sem forma - nem mesmo a da água que é a da vasilha que a contém.

- Bem aprontado isto (...), devemos poder aparecer em nós, verso ou romance, descobrindo-nos alheios e perfeitos. Talvez já não haja a força de os escrevermos - mas isso será preciso. Poderemos criar em 2ª mão - imaginar em nós um poeta a escrever, e ele escrevendo de uma maneira, outro poeta [...] escreverá de outra. Eu, em virtude de ter apurado imenso esta faculdade, procuro escrever de inúmeras maneiras diversas, originais todas.

O mais alto grau do sonho é q[uan]do criado um quadro com personagens, vivemos todas elas ao mesmo tempo - somos todas essas almas conjunta e interactívamente.

É visível o grau de despersonalização e de encinzamento[?] do espírito a que isto leva, e é difícil confesso, fugir a um cansaço geral de todo o ser ao fazê-lo... Mas o triunfo é tal!

1914?

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

 - 214.
"Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.