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Heteronímia

12. Originalidade

Apesar da originalidade de Caeiro, Cesário Verde é uma espécie de percursor histórico do sensacionismo.
[ilustração: Bartolomeu dos Santos. «Caeiro».
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«Até a novidade e a maneira de ser novo são novidades em Caeiro.»
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Com quem se pode comparar Caeiro? Com pouquíssimos poetas. Não, diga-se desde já, com Cesário Verde, a quem ele se refere como se a um antepassado literário, embora uma espécie de antepassado degenerado antecipadamente. Cesário Verde exerceu sobre Caeiro o género de influência a que se pode chamar apenas provocadora da inspiração, sem transmitir qualquer espécie de inspiração. Um exemplo familiar ao leitor será a influência bem real de Chateaubriand sobre Hugo, um homem totalmente diferente pessoal, literária e socialmente. (. . . )

Os pouquíssimos poetas com os quais Caeiro se pode comparar, ou por no-los fazer ou poder fazer lembrar, ou por se poder conceber que tenha sido por eles influenciado, quer o achemos seriamente quer não, são Whitman, Francis Jammes e Teixeira de Pascoaes.

Com quem mais se parece é com Whitman. Em alguns aspectos secundários parece-se com Francis Jammes. Lembra-nos fortemente Pascoaes porque, sendo a sua atitude para com a Natureza essencialmente metafísica, naturalística e aquilo a que se pode chamar uma atitude absorta, como a de Pascoaes, no entanto Caeiro é tudo isso mas ao invés do que Pascoaes é do mesmo modo.

Caeiro e Pascoaes

Tanto Caeiro como Pascoaes encaram a Natureza de um modo directamente metafísico e místico, ambos encaram a Natureza como o que há de importante, excluindo, ou quase excluindo, o Homem e a Civilização, e ambos, finalmente, integram tudo o que cantam nesse seu sentimento naturalista. Esta base abstracta tem de comum: mas no resto são, não diferentes, mas absolutamente opostos. Talvez Caeiro proceda de Pascoaes; mas procede por oposição, por reacção. Pascoaes virado do avesso, sem o tirar do lugar onde está, dá isto — Alberto Caeiro.

Como Whitman, Caeiro deixa-nos perplexos. Somos arrancados à nossa atitude crítica por um fenómeno tão extraordinário. Jamais vimos algo de parecido com ele. Mesmo depois de Whitman, Caeiro é estranho, e terrivelmente, pavorosamente, novo. Mesmo na nossa época, em que julgamos que nada há que nos possa espantar ou que possa gritar-nos uma novidade, Caeiro realmente espanta e realmente respira novidade absoluta. Conseguir isto numa época como a nossa constitui a prova definida e definitiva do seu génio.

É tão novo que, por vezes, parece difícil conceber claramente toda a sua novidade. É demasiado novo, e a sua novidade excessiva perturba a nossa visão dele, assim como todas as coisas em excesso perturbam a visão — embora seja bem uma novidade ser a própria novidade a coisa excessiva e que deixa a visão perturbada. Mas é essa mesma a coisa notável. Até a novidade e a maneira de ser novo são novidades em Caeiro. Difere de todos os poetas de maneira diferente daquela em que todos os grandes poetas são diferentes de outros grandes poetas. A sua individualidade possui-a ele de maneira diferente da de todos os poetas que o precederam. Whitman é bem inferior a este respeito. Para explicar Whitman, mesmo numa base em que se lhe reconheça toda a originalidade concebível, basta-nos pensar nele como alguém que viveu [amou?] intensamente a vida, e daí brotam os seus poemas como flores de uma moita. Mas o mesmo processo já não se aplica a Caeiro. Mesmo que o encaremos como um homem que vive fora da civilização (hipótese obviamente impossível), como homem com uma visão excepcionalmente clara das coisas, isso não produz logicamente no nosso espírito um resultado que se pareça com O Guardador de Rebanhos. A própria ternura das coisas como simples coisas, que caracteriza o tipo do homem que supomos (propomos) não caracteriza Caeiro. Fala algumas vezes com ternura das coisas, mas pede-nos perdão de o fazer, explicando que se fala assim é por causa da nossa «estupidez dos sentidos», para nos fazer sentir «a existência absolutamente real» das coisas. Entregue a si próprio, não tem qualquer ternura pelas coisas, mal tem qualquer ternura, até, pelas suas sensações. Aqui tocamos a sua grande originalidade, a sua objectividade quase inconcebível. Vê as coisas apenas com os olhos, não com a mente. Quando olha para uma flor, não permite que isso provoque quaisquer pensamentos. Longe de ver sermões nas pedras, nem sequer se permite conceber uma pedra como ponto de partida para um sermão. O único sermão que uma pedra encerra é, para ele, o facto de existir. A única coisa que uma pedra lhe diz é que nada tem para lhe dizer. Pode-se conceber um estado de espírito parecido com este, mas não pode conceber-se num poeta. Esta maneira de olhar para uma pedra pode ser definida como a maneira totalmente não-poética de a olhar. O facto estupendo acerca de Caeiro é que produz poesia a partir deste sentimento, ou, antes, ausência de sentimento. Sente positivamente o que até aqui só podia ser concebido como sentimento negativo. Perguntai a vós próprios: que pensais duma pedra quando a olhais sem pensar nela? O que se resume no seguinte: que pensais duma pedra quando não pensais mesmo nela? A pergunta, é claro, é completamente absurda. A coisa estranha em tudo isto é que toda a poesia de Caeiro se baseia num sentimento que achais impossível conceber como susceptível de existir. Talvez eu tenha logrado apontar a natureza extraordinária da inspiração de Caeiro, a fenomenal novidade da sua poesia, o seu génio espantoso e sem precedente, toda a sua atitude.

 Diz-se que Alberto Caeiro deplorou o nome de «sensacionismo» que um discípulo seu — é certo que um discípulo um tanto estranho: o Sr. Álvaro de Campos — atribuiu à sua atitude e à atitude que criou. Se Caeiro protestou contra esta palavra por possivelmente parecer designar uma «escola», como o Futurismo, por exemplo, tinha razão, e por dois motivos. Pois a própria sugestão de escolas e movimentos literários soa mal quando aplicada a um género de poesia tão incivilizada e natural. E, além disso, embora Caeiro tenha, pelo menos, dois «discípulos», o facto é que tem exercido sobre estes uma influência igual à que qualquer poeta — Cesário Verde, talvez — exerceu sobre ele: nenhum se lhe assemelha, nem de longe, embora, na realidade, a influência de Caeiro se possa descortinar em toda a obra deles muito mais nitidamente do que a influência de Cesário Verde sobre Caeiro.

Mas o facto é que — postas de lado estas considerações — nenhum nome poderia descrever melhor a sua atitude. A sua poesia é, de facto, a «sensacionista». A sua base é a substituição do pensamento pela sensação, não só como base da inspiração — o que é compreensível — mas como meio de expressão, se assim podemos falar. E, acrescente-se, aqueles seus dois discípulos, diferentes como são dele e um do outro — são também sensacionistas, de facto. É que o Dr. Ricardo Reis, com o seu neoclassicismo, a sua crença verdadeira e real na existência das divindades pagãs, é um sensacionista puro, embora de género diferente. A sua atitude para com a natureza é tão agressiva para com o pensamento como a de Caeiro; não imagina quaisquer significados nas coisas. Vê-as apenas, e, se parece vê-las de modo diferente do de Caeiro, é que, embora as veja tão pouco intelectualmente e tão pouco poeticamente como este último as vê à luz de um conceito religioso definido do universo — paganismo, paganismo puro, o que altera necessariamente a sua maneira muito directa de sentir. Mas é pagão porque a religião sensacionista é o paganismo. É claro que um sensacionista puro e integral como Caeiro não tem, logicamente, qualquer religião, visto a religião não se encontrar entre os dados imediatos da sensação pura e directa. Mas Ricardo Reis exprimiu com grande clareza a lógica da sua atitude como puramente sensacionista. Segundo afirma, não só nos deveríamos prostrar ante a objectividade pura das coisas (daí o seu sensacionismo propriamente dito e o seu neoclassicismo, pois foram os poetas clássicos os que menos comentaram as coisas, ou as comentaram menos directamente), mas prostrar-nos ante a objectividade igual, a realidade, a naturalidade, das necessidades da nossa natureza, entre as quais se conta o sentimento religioso. Caeiro é o sensacionista puro e absoluto que se prostra ante as sensações qua exterior e nada mais admite. Ricardo Reis é menos absoluto; prostra-se também ante os elementos primitivos da nossa própria natureza, visto para ele os nossos sentimentos primitivos serem tão reais e naturais como as flores e as árvores. Portanto, Caeiro é religioso. E, visto ser sensacionista, é pagão pela religião; o que se deve, não só à natureza da sensação que se concebera como admitindo uma religião qualquer, mas também à influência das leituras clássicas a que o seu sensacionismo o tinha impelido.

Álvaro de Campos — o que é bastante curioso — encontra-se no extremo oposto, inteiramente oposto a Ricardo Reis. No entanto, não é menos discípulo de Caeiro ou menos sensacionista propriamente dito. Aceitou de Caeiro, não o essencial e o objectivo, mas o aspecto deduzível e subjectivo da sua atitude. A sensação é tudo, afirma Caeiro, e o pensamento é uma doença. Por sensação entende Caeiro a sensação das coisas tais como são, sem acrescentar quaisquer elementos do pensamento pessoal, convenção, sentimento ou qualquer outro lugar da alma. Para Campos, a sensação é tudo, sim, mas não necessariamente a sensação das coisas como são, antes das coisas conforme sentidas. De modo que vê a sensação subjectivamente e envida todos os seus esforços, uma vez que assim pensa, não para desenvolver em si a sensação das coisas como são, mas toda a casta de sensações de coisas, e até da mesma coisa. Sentir é tudo: é lógico concluir que o melhor é sentir toda a casta de coisas de todas as maneiras, ou, como diz o próprio Álvaro de Campos, «sentir tudo de todas as maneiras». Assim, aplica-se a sentir a cidade na mesma medida em que sente o campo, o normal como sente o anormal, o mal como sente o bem, o mórbido como sente o saudável. Nunca interroga, sente. É o filho indisciplinado da sensação. Caeiro tem uma disciplina: as coisas devem ser sentidas tais como são. Ricardo Reis tem outra disciplina diferente: as coisas devem ser sentidas, não só como são, mas também de modo a integrarem-se num certo ideal de medida e regra clássicas. Em Álvaro de Campos, as coisas devem ser simplesmente sentidas.

Mas a origem comum destes três aspectos tão diferentes da mesma teoria é patente e manifesta.

Caeiro não tem ética a não ser a simplicidade. Ricardo Reis tem uma ética pagã, meio epicurista e meio estóica, mas uma ética muito definida, que dá à sua poesia uma elevação que o próprio Caeiro — embora, independentemente da maestria, seja dos dois o génio de maior estatura — não logra atingir. Álvaro de Campos não tem sombra de ética; é amoral, se não positivamente imoral, pois, evidentemente, segundo a sua teoria, e natural que ame as sensações fortes mais do que as fracas, e as sensações fortes são, pelo menos, todas elas egoístas e ocasionalmente as sensações da crueldade e da luxúria. Assim, Álvaro de Campos é dos três o que mais se parece com Whitman, mas nada tem da camaradagem deste: anda sempre afastado da multidão, e, quando sente com ela, fá-lo muito nítida, muito confessadamente para agradar a si próprio e se proporcionar sensações brutais. A ideia da perda da inocência duma criança de oito anos (Ode II, ad finem) [Ode Triunfal] é-lhe positivamente agradável, pois satisfaz duas sensações muito fortes — a crueldade e a luxúria. O mais que Caeiro diz a que talvez se possa chamar imoral é que não quer saber do sofrimento dos homens, e que a existência de doentes é interessante por ser um facto. Não há nada disto em Ricardo Reis. Vive dentro de si próprio, com a sua fé pagã e o seu epicurismo triste, mas uma das suas atitudes é precisamente não magoar ninguém. Não quer saber absolutamente nada dos outros, nem sequer o suficiente para se interessar pelo seu sofrimento ou pela sua existência. É moral por se bastar a si próprio.

Pode-se dizer, comparando estes três poetas com as três ordens de espíritos religiosos, e comparando, de momento, o sensacionismo (embora, talvez, impropriamente) com uma religião, que Ricardo Reis é o espírito religioso normal dessa fé, Caeiro o místico puro, Álvaro de Campos o excessivamente ritualista. É que Caeiro perde de vista a Natureza na natureza, perde de vista a sensação na sensação, perde de vista as coisas nas coisas. E Campos perde de vista a sensação nas sensações.

1917?

Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.

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Trad.: Jorge Rosa