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Heteronímia

6. Discípulos

Campos explica a influência de Caeiro em cada um dos seus discípulos.
[ilustração: Júlio Pomar. Heterónimos. Azulejos no Metropolitano de Lisboa. Foto L.A.
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«Em torno do meu mestre Caeiro havia principalmente três pessoas — o Ricardo Reis, o António Mora e eu.»
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O meu mestre Caeiro era um mestre de toda a gente com capacidade para ter mestre. Não havia pessoa que se acercasse de Caeiro, que falasse com ele, que tivesse a oportunidade física de conviver com o seu espírito, que não viesse outro dessa única Roma de onde se não voltava como se ia - a não ser que essa pessoa o não fosse, isto é, a não ser que essa pessoa fosse, como a maioria, incapaz de ser individual a não ser por ser, no espaço, um corpo separado de outros corpos e estragado simbolicamente pela forma humana.

Nenhum homem inferior pode ter um mestre, porque o mestre não tem nele nada de que o ser. É por esta razão que os temperamentos definidos e fortes são facilmente hipnotizáveis, que os homens normais o são com relativa facilidade, mas não são hipnotizáveis os idiotas, os imbecis, os fracos e os incoerentes. Ser forte é ser capaz de sentir.

Em torno do meu mestre Caeiro havia, como se terá depreendido destas páginas, principa1mente três pessoas - o Ricardo Reis, o António Mora e eu. Não faço favor a ninguém, nem a mim, dizendo que éramos, e somos, três indivíduos, absolutamente distintos, pelo menos pelo cérebro, da humanidade corrente e animal. E todos nós três devemos o melhor da alma que hoje temos ao nosso contacto com o meu mestre Caeiro. Todos nós somos outros - isto é, somos nós mesmos a valer - desde que fomos passados pelo passador daquela intervenção carnal dos Deuses.

O Ricardo Reis era um pagão latente, desentendido da vida moderna e desentendido daquela vida antiga, onde deveria ter nascido - desentendido da vida moderna porque a sua inteligência era de tipo e qualidade diferente; desentendido da vida antiga porque a não podia sentir, pois se não sente o que não está aqui. Caeiro, reconstrutor do Paganismo, ou, melhor, fundador dele no que eterno, trouxe-lhe a matéria de sensibilidade que lhe faltava. E Ricardo Reis encontrou-se o pagão que já era antes de se encontrar. Antes de conhecer Caeiro, Ricardo Reis não escrevera um único verso, e quando conheceu Caeiro tinha já vinte e cinco anos. Desde que conheceu Caeiro, e lhe ouviu o Guardador de Rebanhos, Ricardo Reis começou a saber que era organicamente poeta. Dizem alguns fisiologistas que é possível a mudança de sexo. Não sei se é verdade, porque não sei se alguma coisa é «verdade». Mas o certo é que Ricardo Reis deixou de ser mulher para ser homem, ou deixou de ser homem para ser mulher - como se preferir - quando teve esse contacto com Caeiro.

O António Mora era uma sombra com veleidades especulativas. Passava a vida a mastigar Kant e tentar ver com o pensamento se a vida tinha sentido. Indeciso, como todos os fortes, não tinha encontrado a verdade, ou o que para ele fosse verdade, o que para mim é o mesmo. Encontrou Caeiro e encontrou a verdade. O meu mestre Caeiro deu-lhe a alma que ele não tinha; pôs dentro do Mora periférico, que ele sempre tinha apenas sido, um Mora central. E o resultado foi a redução a sistema e a verdade lógica dos pensamentos instintivos de Caeiro. O resultado triunfal foi esses dois tratados, maravilhas de originalidade e de pensamento, O Regresso dos Deuses e os Prolegómenos a uma Reformação do Paganismo.

Por mim, antes de conhecer Caeiro, eu era uma máquina nervosa de não fazer coisa nenhuma. Conheci o meu mestre Caeiro mais tarde que o Reis e o Mora, que o conheceram, respectivamente, em 1912 e 1913. Conheci Caeiro em 1914. Já tinha escrito versos - três sonetos e dois poemas («Carnaval» e «Opiário»). Esses sonetos e estes poemas mostram o que eu sentia quando estava sem amparo. Logo que conheci Caeiro, verifiquei-me. Cheguei a Londres e escrevi imediatamente a «Ode Triunfal«. E de aí em diante, por mal ou por bem, tenho sido eu.

Mais curioso é o caso do Fernando Pessoa, que não existe, propriamente falando. Este conheceu Caeiro um pouco antes de mim - em 8 de Março de 1914, segundo me disse. Nesse mês, Caeiro viera a Lisboa passar uma semana e foi então que o Fernando o conheceu. Ouviu ler o Guardador de Rebanhos.Foi para casa com febre, e escreveu, num só lance ou traço, a Chuva Oblíqua. A Chuva Oblíqua não se parece em nada com qualquer poema do meu mestre Caeiro, a não ser em certa rectilineadade do movimento rítmico. Mas o Fernando Pessoa era incapaz de arrancar aqueles extraordinários poemas do seu mundo interior se não tivesse conhecido Caeiro. Mas, momentos depois de conhecer Caeiro, sofreu o abalo espiritual que produziu esses poemas. Foi logo. Como tem uma sensibilidade excessivamente pronta, porque acompanhada de uma inteligência excessivamente pronta, o Fernando teve sem demora a reacção à Grande Vacina - a vacina contra a estupidez dos inteligentes. E o que há de mais admirável na obra do Fernando Pessoa é esse conjunto de seis poemas, essa Chuva Oblíqua. Sim, poderá haver ou vir a haver, coisas maiores na obra dele, mas mais originais nunca haverá, mais novas nunca haverá, e eu não sei portanto se as haverá maiores. E, mais, não haverá nada de mais realmente Fernando Pessoa, de mais intimamente Fernando Pessoa. Que coisa pode exprimir melhor a sensibilidade sempre intelectualizada, a atenção intensa e desatenta, a subtileza quente da análise fria de si mesmo, do que esses poemas-intersecções, onde o estado de alma é simultaneamente dois, onde o subjectivo e o objectivo, separados, se juntam, e ficam separados, onde o real e o irreal se confundem, para que fiquem bem distintos. Fernando Pessoa fez nesses poemas a verdadeira fotografia da própria alma. Num momento, num único momento, conseguiu ter a sua individualidade que não tivera antes nem poderá tornar a ter, porque a não tem.

Viva o meu mestre Caeiro!

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

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«Notas para a recordação do meu mestre Caeiro»