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Heteronímia

10. Modernismo

Para Campos, o que é artificial também é natural.
[ilustração: Barcos. Foto L.A.
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«Creio na máquina porque tenho que a aceitar do mesmo modo que a árvore.»
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Discípulo, como comovidamente sou, do meu mestre Caeiro, sou discípulo com inteligência, e portanto com crítica. Nem ele quereria ser seguido de outra maneira, pois não gostava de animais.

Assim, nunca aceitei aquele critério que há em Caeiro, e que não é das coisas originais que há nele, de que há uma distinção qualquer entre o natural e o artificial. Não há tal distinção, porque ambos são reais. Compreendo a distinção entre os sonhos e a vida, ainda que conceda que um bom metafísico a possa confundir. Mas a distinção entre a árvore e a máquina sempre me pareceu falsa. Parece que a árvore e a máquina são distintas porque a primeira é um produto imediato da natureza, e a segunda um produto mediato aparecido por intermédio da inteligência humana. Mas, na realidade, todo o produto é mediato: a árvore aparece através da semente, a máquina através da inteligência. Tanto a semente como a inteligência são elementos da realidade. E, se dissermos que a árvore surge da semente e a máquina do cérebro teremos reduzido tudo a termos materiais e estabelecido a igualdade de direitos na matéria.

Não, não aceitei nunca o critério de Caeiro sobre o artificial, nem o critério de Caeiro sobre o humanitário. Caeiro despreza o artificial porque não nasce da terra, e despreza o humanitário, porque não nasce do egoísmo. Mas a flor da árvore não nasce da terra mas da árvore, e o amor da humanidade não nasce do egoísmo mas do cansaço dele. Tudo é natural mas com uma circunferência maior.

Oiço ainda, na lembrança do meu coração, aquela voz plácida e fria - tão cheia contudo de todo o calor íntimo da realidade! - dizer-me, com a sua simplicidade de dentro: «Álvaro de Campos, eu creio no que tenho que aceitar.» E eu adopto a frase letra a letra. Creio na máquina porque tenho que a aceitar do mesmo modo que a árvore.

Sim, sei bem que a Natureza é o refúgio, que os campos albergam os tuberculosos de todos os pontos do corpo, que o vento passando na folhagem etc. etc. Mas já me isolei numa grande fábrica, entre os seus ruídos; já fugi do mundo num grande café internacional, já fui eremita no ermo de ninguém saber quem eu era numa vila de província cujo nome eu não conhecia nem conheço.

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

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«Notas para a recordação do meu mestre Caeiro»?