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Heteronímia

20. Regresso dos Deuses

Em «O Regresso dos Deuses», António Mora explica a obra de Caeiro à luz da filosofia neopagã.
[ilustração: José João Brito. «Atenção obras». 1985.
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«O universo que Caeiro vê é o contrário do que vêem os homens do nosso tempo.»
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Tinha que começar o paganismo por a substância aparecer. Mas a substância como?

Como o que está na inteligência tem de estar primeiro nos sentidos (aqui dito sem inútil filosofia, mas apontando apenas o facto material), o paganismo tinha de ser instintivo, de sensibilidade, antes de poder novamente ser uma ideia formada e consciente. Era preciso, para que pudesse renascer o paganismo, que começasse por aparecer um pagão. Era preciso um homem cujo espírito fosse pagão, para que espontaneamente revelasse à sensibilidade o paganismo, a que outros, percebendo este adaptar-se, dariam a forma intelectual. Era necessário que encontrássemos a vaga substância do paganismo; outros, sentindo-a e compreendendo-a, a transportariam para os atributos.

Sem dúvida, se o Destino quisesse que assim fosse, o faria. O Destino o fez.

Apareceu Alberto Caeiro.

Que direcção inexplicável do Fado, que gesto inicial de Deuses obrou esse milagre humano? Como foi que um português havido em extrema desordem da Guerra, na última abjecção da pátria, encontra em si a substância íntima daquela verdade por que os gregos conquistaram o mundo? Não sei explicar, nem é preciso, recito o facto por que os Deuses o quiserem.

O universo que Caeiro vê é o contrário do que vêem os homens do nosso tempo, os homens da nossa civilização desde que ela se formou na morte aparente do paganismo.

Para nos dar a substância absoluta do paganismo, tinha Caeiro que ser mais grego que os gregos, mais puramente objectivista que eles. É-o. Nenhum pagão poderia ter escrito aquele verso culminante de Caeiro, e, para mim, o verso culminante de toda a literatura:

A [Natureza é partes sem] um todo.

Simples, transposta, infantil, a obra é ainda informe: está cheia de contradições superficiais, de elementos estranhos à sua essência. Nem essa essência é nitidamente distinguível através das incorrecções. O próprio Caeiro com a sua maravilhosa lucidez, mental como visual, as nota, e nota os seus defeitos, e os explica para que o desculpemos. Ele sabe que o seu paganismo é dito em um hoje de cristãos; que o seu pensamento pagão aparece através de um meio cristão, e que há a diferença portanto com que é preciso contar.

1916

Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença,

1994.

 - 263.

Prefácio a Caeiro.