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Heteronímia

19. António Mora

Mora é o filósofo do neopaganismo português e projectado director da revista Athena.
[ilustração: José João Brito. Pessoa e eléctrico. 1985.
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«A religião chamada pagã é a mais natural de todas.»
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REGRESSO DOS DEUSES.

Sem discutirmos agora quais sejam os fundamentos metafísicos ou da religião, ou de uma religião especial, basta que, constatada que está pelo sociólogo a necessidade humana do fenómeno religioso para disciplina e orientação das sociedades, que consignemos, corolariamente, que mais disciplinará e orientará as sociedades aquela religião que mais próxima esteja da Natureza. Essa religião, por estar mais próxima da Natureza, mais directamente pode agir sobre os homens, mais os pode influenciar no sentido de não se desviarem das leis naturais que fundamentalmente regem a vida humana, porque (a) toda a vida, mais pode estimular e dirigir as actividades sociais do espírito humano, porque menos entrava as outras, deixando, por isso, estas mais livres.

Ora é demonstrável, com facilidade, que a religião chamada pagã é a mais natural de todas.

Apoia-se esta demonstração fácil em três raciocínios simples.

A religião pagã é politeísta. Ora a natureza é plural. A natureza, naturalmente, não nos surge como um conjunto, mas como «muitas coisas», como pluralidade de coisas. Não podemos afirmar positivamente, sem o auxílio de um raciocínio interveniente, sem a intervenção da inteligência na experiência directa, que exista, deveras, um conjunto chamado Universo, que haja uma unidade, uma coisa que seja uma, designável por natureza. A realidade, para nós, surge-nos directamente plural. O facto de referirmos todas as nossas sensações à nossa consciência individual é que impõe uma unificação falsa (experimentalmente falsa) à pluralidade com que as coisas nos aparecem. Ora a religião aparece-nos, apresenta-se-nos como realidade exterior. Deve portanto corresponder ao característico fundamental da realidade exterior. Esse característico é a pluralidade de coisas. A pluralidade de deuses, portanto, o primeiro característico distintivo de uma religião que seja natural.

A religião pagã é humana. Os actos dos deuses pagãos são actos dos homens magnificados; são do mesmo género, mas em ponto maior, em ponto divino. Os deuses não saem da humanidade rejeitando-a, mas excedendo-a, como os semi-deuses. A natureza divina, para o pagão, não é anti-humana ao mesmo tempo que super-humana: é simplesmente super-humana. Assim, sobre estar de acordo com a natureza no que puramente mundo exterior, a religião pagã está de acordo com a natureza no que humanidade.

Finalmente, a religião pagã é política. Isto é, é parte da vida da cidade ou do estado, não visa a um universalismo. Não busca impor-se a outros povos, mas receber deles. Está assim de acordo com o princípio essencial da civilização que [é] a síntese em uma nação de todas as possíveis influências de todas as outras nações — critério de que só divergem os critérios estreitamente nacionalistas, que são o provincianismo da política, e os critérios imperialistas, que são da decadência. Nunca se viu nação forte ser conservadora, nem nação sã ser imperialista. Quer impor-se quem não pode já transformar-se. Quer dar quem já não pode receber. Mas quem não pode transformar-se, na verdade estagnou e quem não pode receber, estagnou também.

Assim a religião pagã se encontra em harmonia com os três pontos naturais em que a humanidade toca — com a própria essência experimental da natureza inteira; com a própria essência da natureza humana; e com a própria essência da natureza humana em marcha (em marcha social), isto é da natureza humana civilizada, isto é, da civilização.

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Nas outras religiões conhecidas, e que hajam deveras direito de cidade na história humana, há sempre um afastamento desta linha natural — desde o afastamento máximo do budismo até ao, menor posto que grave, do cristismo.

O budismo, e, antes dele, a religião da Índia, representam o mais puro tipo do afastamento dos ideais naturalmente humanos, que o coleccionador de doenças possa desejar encontrar. Partindo, clara ou obscuramente, do princípio desumano de que a vida é uma ilusão, o budista ou o bramanista (??) visa, no seu culto religioso, transcender essa mísera humanidade.

Semelhantemente o cristão...

O politeísmo natural, embora obscuramente, a todas as religiões, longe de ser o seu elemento grosseiro, é o seu elemento humano.

O Paganismo grego representa o mais alto nível da evolução humana, [...] para o equilíbrio que deve ser a evolução humana, esta e não outra. Deve ser a evolução para a ciência, e não para a emoção, que nos caracterize, deveras diferenciando-nos dos animais inferiores. Ora a ciência como se manifestará, no campo social, senão na noção justa da natureza e das relações humanas, na compreensão das leis que regem os seres inanimados, os seres vivos, e os seres sociais? Foram os gregos quem mais alto subiu na compreensão científica. Foram por isso os gregos quem mais longe foi nas artes da civilização.

1916?

Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.

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