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Heteronímia

17. Paganismo

Reis estabelece o programa do movimento neo-pagão ao qual pertencem os heterónimos.
[ilustração: José João Brito. S/ título. Objecto (madeira). 1983/1990
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«Nós, neopagãos portugueses, rejeitamos a obra cristã por completo.»
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PROGRAMA GERAL DO NEOPAGANISMO PORTUGUÊS

Mau grado as duas fórmulas em que se dividem os representantes desta corrente, a fórmula directamente reconstitutiva do paganismo helénico, e a fórmula simples aplicadora dele às condições modernas, os neopagãos portugueses concordam em uma atitude essencial, sendo por isso que podem constituir uma corrente que, embora pequena, é definida. Em casos destes, em que dois ramos entre si divergentes constituem uma corrente, sucede que a sua união essencial provém de um inimigo comum a combater, da comum aversão, porventura, em que a especificidade da corrente assenta.

Aqui essa aversão comum é a religião de Cristo, e os resultados que dela provieram, porque por ela representados, à civilização a que pertencem.

Aquele ramo da corrente neopagã portuguesa que se pode designar o ramo ortodoxo, adentro do conceito de paganismo, considera a religião cristã como um produto da decadência romana, que se fixou, porque representa um stado social contínuo. Considera o cristismo em parte como uma mera heresia pagã, heresia que atinge a essência e não a forma, da fé; considera, além disso, o cristismo uma violação das leis de equilíbrio que regem, ou devem reger, a nossa civilização; considera-o ainda como produto de uma degenerescência nas ideias e nos sentimentos de onde deriva o stado perpetuamente mórbido da nossa civilização.

O outro ramo do nosso neopaganismo aceita a sensibilidade moderna e os seus resultados mórbidos, reconhecendo-os como mórbidos, mas tendo-os, ao mesmo tempo, por inirradicáveis. Assim, em vez de aspirar a, ou julgar mesmo possível, uma reimplantação do paganismo, julga que o paganismo serve apenas para base eterna da nossa civilização, devendo porém servir de disciplina às emoções criadas pelo cristismo.

Publicaremos, na altura em que estiverem prontas, as duas obras teóricas onde se apoia, nos seus dois ramos divergentes, o neopaganismo português: O Regresso dos Deuses de António Mora e O Paganismo Superior de Fernando Pessoa. Antes disso, porém, será publicada aquela obra fundamental de onde parte todo este movimento, sobretudo naquele seu ramo a que chamámos o ortodoxo — O Guardador de Rebanhos, E Outros Poemas e Fragmentos, de Alberto Caeiro (1889-1915).

Com efeito é matéria para escândalo íntimo o desleixo em que temos estado, que conservamos ainda fora dos prelos aquela obra em que todos nós, mau grado as nossas divergências, pomos os olhos cheios de admiração. Essa obra, a maior obra poética dos últimos tempos, não devia estar ainda inédita...

O ramo representado apenas por Fernando Pessoa crê que assim como, no fundo, o movimento cristista não foi senão uma interiorização do paganismo, assim no fundo o neopaganismo deve seguir a esteira do cristismo, mas no verdadeiro sentido. Ao passo que os neo-pagãos ortodoxos acham que a interiorização do paganismo é frase sem sentido, pois que interiorizar o paganismo é aboli-lo, Fernando Pessoa crê que o erro e a morbidez do cristismo não derivam do facto de ele ter interiorizado o paganismo, mas sim de o não ter sabido interiorizar, de ter errado o caminho para a alma. Em outras palavras, o que havia a fazer ao paganismo para o interiorizar, era descobrir qual o sentido interior do politeísmo, o que era, na sua essência subjectiva, o politeísmo.

Mas, de comum, nós, neopagãos portugueses, rejeitamos a obra cristã por completo, na sua forma directa, e nas suas formas indirectas. Assim, rejeitamos: a democracia, todas as formas de governo não-aristocrático, todas as fórmulas humanitárias, todas as fórmulas de desequilíbrio como, por exemplo, o imperialismo germânico ou a democracia aliada; rejeitamos o feminismo, porque pretende igualar a mulher ao homem e conceder à mulher direitos políticos e sociais, quando a mulher é um ser inferior apenas necessário à humanidade para o facto essencial mas biológico apenas da sua continuação; rejeitamos as ternuras anti-científicas, como o vegetarianismo, o anti-alcoolismo, o anti-vivisseccionismo, não admitindo direitos aos animais inferiores ao homem. Rejeitamos o princípio pacifista; rejeitamos os imperialismos modernos, de índole católica todos — todo o sacro império romano que cada Inglaterra ou cada Alemanha ocultamente quer ser.

Nisto estamos todos de acordo.

Rejeitamos o spartanismo idiota dos eugenistas, e do aperfeiçoamento à máquina das raças. Rejeitamos a fórmula tradicionalista, porque a única verdadeira tradição civilizada é a tradição pagã: as outras são tradições locais estéreis de efeito civilizacional, prejudiciais às nações. Povo conservador, povo morto.

1917?

Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.

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