Filosofia
17. Paganismo
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«Como disse Píndaro, a raça dos deuses e dos homens é uma só.»
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O Conselho Magistral do Neopaganismo Português delegou em mim que escrevesse o volume introdutório da sua propaganda exterior. Devo ao público a explicação de que, tendo procurado, no que possível, esquivar-me e em vão a essa missão honrosa, o fiz pelas razões que vou dar, e que servirão, para os que o assunto interesse, de advertência a pôr à margem de contradições apontáveis no futuro.
Julguei abusivamente honrosa a escolha do meu nome para esta tarefa, não porque me julgue incapaz de demonstrar, e por mais de um processo, a verdade e a necessidade do Paganismo, mas porque, emitidos por intermédio meu os princípios essenciais do paganismo (sistema pagão), sofrerão inevitavelmente o desvio que se atribui, no campo da observação pura, ao que os astrónomos (homens de ciência) chamam a «equação pessoal». Vou dizer em que consiste, a meu ver, o desvio que esses princípios sofrem ao coarem-se pelo meu entendimento.
Em primeiro lugar, conquanto concorde com os meus camaradas e os meus Mestres no renovamento pagão no que respeita à essência do sistema, dou ao paganismo uma interpretação diversa da da maioria deles; mais lata, me parece, mais doentia, quero crer; mas diferente, e isso é o que importa. Na sua maioria eles são o que posso designar por pagãos ortodoxos, filhos da primitividade grega, crentes imediatos na realidade e na agência dos Deuses. Eu sou um pagão decadente, do tempo do outono da Beleza; do sonolecer [?] da limpidez antiga, místico intelectual da raça triste dos neoplatónicos da Alexandria.
Como eles creio, e absolutamente creio, nos Deuses, na sua agência e na sua existência real e materialmente superior. Como eles creio nos semi-deuses, os homens que o esforço e a (...) ergueram ao sólio dos imortais; porque, como disse Píndaro, «a raça dos deuses e dos homens é uma só». Como eles creio que acima de tudo, pessoa impassível, causa imóvel e convicta [?], paira o Destino, superior ao bem e ao mal, estranho à Beleza e à Fealdade, além da Verdade e da Mentira. Mas não creio que entre o Destino e os Deuses haja só o oceano turvo [...] o céu mudo da Noite eterna. Creio, como os neoplatónicos, no Intermediário Intelectual, Logos na linguagem dos filósofos, Cristo (depois) na mitologia cristã. Nisto consiste a minha heterodoxia pagã. Mas consiste só nisto, e no que é campo aberto e questão a discutir. Nem os Mestres, nem os meus condiscípulos, me levam a erro que eu assim creia. Eu, porém, julguei que este conceito, por ser pelo menos um acréscimo ao paganismo essencial, devia inibir de ser escritor do primeiro livro de esclarecimento. Eles não pensam assim.
Mais do que, propriamente, o dos neoplatónicos é meu o paganismo sincrético de Juliano Apóstata.
Isto diz respeito às divergências relativas aos pontos secundários do paganismo. Outra, porém, existia que me parecia tocar mais perto do coração do sistema. É que a minha demonstração da verdade do paganismo se baseia em argumentos de espécie quase contrária à dos que se serve (...)
Finalmente — e isto não diz, já, respeito à equação pessoal de que falei — pareceu-me que era injustamente que o meu opúsculo tomava procedência, quer do apport emotivo do poeta Alberto Caeiro, quer da contribuição filosófica do Dr. António Mora, em cujo livro a demonstração do paganismo é completa.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.
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