Filosofia
6. Inteligência
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«A inteligência crítica nem possui a observação científica, nem o raciocínio da inteligência filosófica.» |
— A inteligência humana — disse o Tio Porco —, pertence a uma de três categorias. A primeira categoria é a inteligência científica. É a sua, Sr. Chefe Guedes. A inteligência científica examina os factos, e tira deles as suas conclusões imediatas. Direi melhor: a inteligência científica observa, e determina, pela comparação das coisas observadas, o que vêm a ser os factos.
»A inteligência filosófica — esta é a tua, Abílio — aceita da inteligência científica os factos já determinados e tira deles as conclusões finais. Direi melhor: a inteligência filosófica extrai dos factos o facto.
–– Isso está muito bem dito — atalhou Quaresma.
— Está pelo menos compreensível — respondeu o Tio Porco.
— Ora, além destes dois tipos de inteligência, há outro, a meu ver superior, que é a inteligência crítica. Eu tenho a inteligência crítica — acrescentou com naturalidade.
O Tio Porco parou, extraiu uma mortalha, vazou para dentro dela um pouco de tabaco de uma tabaqueira velha, e depois enrolou com lentidão um cigarro. A mortalha, reparei, ficou suja só da pressão dos dedos ao enrolá-la. O Tio Porco tirou da algibeira uma caixa de fósforos de pau, alumiou um, acendeu o cigarro, e depois continuou:
— A inteligência crítica nem possui a observação que é a base da inteligência científica, nem o raciocínio que é o fundamento da inteligência filosófica. Parasitária, indolente até, por natureza, como são as classes cultas e aristocráticas em relação às outras ela vive apenas de ver as falhas que as suas antecessores, por assim dizer, tiveram. Sobretudo vê as falhas da inteligência filosófica, que, por abstracta é mais da natureza dela.
»A inteligência crítica é de dois tipos — instintivo e intelectual. A inteligência crítica e instintiva vê, sente, aponta as falhas das outras duas, mas não vai mais longe; indica o que está errado, como se o cheirasse, mas não passa disso. A inteligência crítica propriamente intelectual faz mais que isto: determina as falhas das outras duas inteligências, e depois de as determinar constrói, reelabora o argumento delas, restitui-o à verdade onde ela nunca esteve. A inteligência crítica do tipo intelectual é o mais alto grau da inteligência crítica do tipo intelectual.
Como o cigarro se houvesse apagado, o Tio Porco, com a lentidão de antes, acendeu-o de novo.
— Ora as falhas da inteligência científica e da inteligência filosófica são de duas ordens — as falhas gerais e as falhas particulares. Por falhas particulares entendo as falhas peculiares de cada caso que não pertencem à essência desse tipo de inteligência, mas ao seu contacto com determinado assunto. Por falhas gerais entendo, é claro, aquelas que são substanciais nesses tipos de inteligência. Ora a falha essencial da inteligência cientifica é crer que há factos. Não há factos, meus amigos, há só preconceitos. O que vemos ou ouvimos, ou de qualquer modo percebemos, percebemo-lo através de uma rede complexa de preconceitos — uns longinquamente hereditários como são os que constituem a essência dos sentidos, outros proximamente hereditários como são os que constituem a orientação dos sentidos, outros propriamente nossos, derivados da nossa experiência, e que constituem a infiltração da memória e do entendimento na substância dos sentidos. Parece-me que estou sendo um bocadito abstruso de mais, mas eu explico.
»Vejo aquela mesa. O que vejo, antes de mais nada — antes num sentido lógico, ou biológico, se quiserem — é uma coisa de determinada forma, de determinada cor, etc. Isso é o que é da longínqua hereditariedade dos sentidos, pois isso vêem com pequeníssimas diferenças, dependentes da estrutura pessoal do órgão dos sentidos, os outros homens exactamente como eu, e naturalmente, os próprios animais, de modo pouco diferente do que eu. Vejo, depois, no mesmo sentido de depois, uma mesa — o que só pode «ver» quem tenha vivido num lugar, ou numa civilização onde existem mesas, coisas daquele feitio a que chamam «mesas». É esta a visão nascida da minha hereditariedade próxima — próxima, é claro, em relação ao que a outra é de longínqua. E vejo, finalmente, uma mesa que está associada no meu espírito a variadas coisas. Vejo tudo isto, todos estes três elementos de preconceitos, com a mesma visão, com o mesmo golpe de vista, consubstanciados, unos. Ora o defeito central da inteligência científica é crer na realidade objectiva deste triplo preconceito. É claro que à medida que nos afastamos do preconceito pessoal em direcção ao preconceito por assim dizer orgânico, aproximamo-nos, não direi do facto, mas da comunidade de impressões com as outras pessoas, e assim do «facto» efectivamente, mas não num sentido teórico, senão num sentido prático. A realidade é uma convenção orgânica, um contrato sensual entre todos os entes com sentidos.
— Se V. Ex.ª me dá licença — atalhei eu —, esse seu critério que não discuto, nem teria argumentos para discutir, parece-me, em todo o caso, conduzir-nos à convicção da inutilidade absoluta da observação, da ciência, enfim, realmente, de tudo.
— Não é bem assim — respondeu o Tio Porco. — Se o senhor quer dizer que nos leva a crer na inatingibilidade da verdade objectiva, estou de acordo. Mas não, a verdade ou meia verdade subjectiva tem a sua utilidade, uma utilidade, por assim dizer, social: é o que é comum a todos nós, e portanto para todos nós em relação uns aos outros, é como se fosse a realidade absoluta. Acresce que, na maioria das circunstâncias da vida prática, nós não necessitamos conhecer os factos, mas apenas uma ou outra faceta deles, relativa a nós ou aos outros, para nossa utilidade. Por exemplo: aquela mesa está colocada ali à entrada da casa. Que precisa o senhor saber ao entrar aqui, a respeito dela? Que é uma mesa e que está ali. É quanto o senhor precisa de saber para não esbarrar com ela, que é o único «facto» importante para quem entra neste quarto. Para não esbarrar com ela, o senhor não precisa saber se ela é feita de uma coisa chamada pinho, ou de uma coisa chamada casquinha, ou de uma coisa chamada pau-santo.
Como o cigarro de novo se lhe apagara, o Tio Porco de novo o acendeu.
— Nós temos, neste caso, um erro típico da inteligência de tipo científico. Foi o do Sr. Chefe Guedes quando, informado do mau carácter do filho do ourives, e informado também de que ele frequentava muito a loja, desconfiou logo dele. Ora, concedendo que esse mau carácter seja um facto, a verdade é que não é necessariamente um facto adentro do esquema de factos que, somados, constituem os factos deste crime, ou seja o facto deste crime. O crime é um facto, o mau carácter do rapaz é outro facto. Os dois juntos podem não formar um novo facto, que seria a razão causal do rapaz com o crime. Em vez de partir, como faria a inteligência filosófica, e fez aqui o Abílio, dos factos do crime para a conclusão do criminoso, o Sr. Chefe Guedes ligou os dois fenómenos simplesmente por serem factos, e apenas por uma certa contiguidade, por assim dizer, o que é tão lógico como se ligasse o facto de que me caiu agora a cinza do cigarro, com o facto ali daquele senhor se estar a assoar, simplesmente por esses dois fenómenos se darem dentro do mesmo quarto.
O Tio Porco, que tinha com efeito sacudido a cinza, aliás para cima do próprio casaco, tornou a acender o cigarro.
— Isto, porém, é um pouco fora do assunto, porque não são os erros da inteligência científica em geral, e do Sr. Chefe Guedes em particular, que neste momento interessam. De resto, já o Abílio, no seu papel de inteligência filosófica, afastou esse erro particular. É verdade — eu falo assim abstractamente, e às vezes esqueço-me... Não se ofenda o Sr. Guedes de eu falar nos seus erros... Isto...
— De modo nenhum — exclamou Guedes. — De modo nenhum . Além de tudo mais, V. Ex.ª tem toda a razão.
— Bem, está bem, é isso que eu quero que se entenda. Ora vamos agora aos defeitos da inteligência filosófica em geral, e aos do Abílio Quaresma em particular, e aqui neste caso. A inteligência cientifica cai no erro de crer nos factos porque é essencialmente baseada na observação que dá aos factos. A inteligência filosófica cai no seu erro próprio, porque é essencialmente baseada no raciocínio que dá às conclusões. Ora o erro essencial da inteligência filosófica...
— Já sei o que o Tio vai dizer — interrompeu Quaresma, sorrindo. — É que esse erro essencial é não tomar conta de todos os factos que formam o facto que se estuda, e assim tirar conclusões de dados insuficientes.
— Eu não ia dizer isso, filho — respondeu o Tio Porco. — Isso não é um defeito de raciocínio, é apenas um defeito de um mau raciocínio, não é — pelo menos teoricamente — atalhou sorrindo — a essência do raciocínio. O defeito central da inteligência filosófica é objectivar-se, ou antes, objectivar o que não é senão o seu método, quer atribuindo às abstracções de que forçosamente se serve um carácter de «coisas», quer atribuindo ao decurso das coisas aquela regularidade, aquela lógica, aquela racionalidade, que são forçosamente pertença do raciocínio, mas não daquilo sobre o que se raciocina. Os raciocinadores dos séculos XVII e XVIII, sobretudo em França, que supunham que o homem procede racionalmente, erraram toda a psicologia que tinham com essa presunção racional, mas absurda. Isso, é claro, é o erro que citei na sua forma mais crassa. Nessa forma não o cometes tu –– disse o tio Porco apontando para Quaresma. — Mas esse erro tem formas mais subtis... Uma delas é a de supor que todo o procedimento pensado é necessariamente racional, em outras palavras, que toda a premeditação é lógica.
— Não percebo bem — atalhou Quaresma. — O tio quer dizer que a inteligência filosófica tende a crer que toda a premeditação é bem feita, e que todo o cálculo é exacto?! Mas isso seria um erro mais que crasso! Nisso ninguém caiu nem ninguém acreditou, com ou sem inteligência filosófica! Isso seria crer na infalibilidade da inteligência humana!
— Não é isso que quero dizer, filho. Quero dizer que o raciocinador nunca crê que a razão possa ser substancialmente irracional, que o raciocinador não admite o irracional como elemento positivo, e não simplesmente negativo. Olha lá, tu já leste Shakespeare?
— Li em francês — respondeu Quaresma.
O Tio Porco teve um gesto de impaciência.
— É pior que não ter lido — disse. — Bem não é de Shakespeare que se trata. Há numa peca dele — continuou, virando-se para nós outros —, no All's Well that Ends Well, uma menina chamada Beatriz, que quando o tio lhe pergunta se vê bem, ou coisa parecida, responde: «Sim, tio, vejo uma igreja ao meio-dia.»
— Que diabo quer isso dizer? — perguntou o Guedes.
— Não quer dizer nada, e aí é que está o caso — respondeu O Tio Porco sorrindo.
Ficção e Teatro. Fernando Pessoa. (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Europa-América, 1986
- 105.«O Caso da Janela Estreita». 1ª publ. in A Novela Policial-Dedutiva em Fernando Pessoa . Fernando Luso Soares. Lisboa: Diabril, 1976