Proj-logo

MultiPessoa

LABIRINTO · PESSOANA · VÍDEO · JOGOS · INFO

Filosofia

16. Teoria dos deuses

António Mora explica a evolução no espírito humano do concreto para o abstracto.
[ilustração: Manuela Pinheiro. «Poderei eu esquecer que existo?» (pormenor). 1994
] anterior seguinte
«Os deuses são o primeiro grau de abstracção.»
pdf

TEORIA DOS DEUSES. O QUE SÃO OS DEUSES.

Na evolução do espírito humano do pensamento concreto para o pensamento abstracto, há fatalmente um momento em que se dá a transição de uma forma de conceitos para a outra. Como se sabe, o homem primitivo , do mesmo modo que o selvagem de hoje, nas tribos cujo nível mental é de ordem a definir-nos qual fosse a mentalidade primitiva, não tinha o conceito abstracto. Não tinha, por exemplo, a ideia de «árvore», senão que simplesmente a ideia de tal árvore, concretamente. Herbart arquitectou uma curiosa teoria da formação das ideias abstractas; (...)

A evolução humana tem sido uma ascensão da capacidade de ter só ideias concretas para a capacidade de ter ideias abstractas. Como se deu essa transição? Podemos pôr várias hipóteses, mas qualquer delas, que possa ser considerada viável, há-de ter, para o ser, os característicos acumulados de uma hipótese a um tempo psicológica e sociológica. Não que isso forme duas hipóteses; é só uma, que inclui esses dois elementos, por isso que, sendo a mentalidade humana simultaneamente um facto individual e um facto ocorrido dentro da sociedade, as duas explicações redundam na mesma, abarcam um mesmo facto com dois aspectos, que são um só.

Teoria dos deuses: Os deuses são o primeiro grau de abstracção. Ao passar do conceito concreto de tal árvore para a ideia abstracta de «árvore», o homem atravessou fatalmente um período intermédio. Que espécie de conceito faria ele das coisas — das árvores, para seguir o nosso exemplo — quando atravessava esse período? Pela hipótese, — e a hipótese marca sem dúvida um estádio que existiu, porque não podia deixar de existir, — o homem tinha já subido acima do conceito concreto de tal árvore mas não tinha chegado ao conceito abstracto de «árvore», de «árvore em si» (e aqui a expressão faz com que nos perguntemos se a «coisa-em-si» de Kant não seria uma mera concretização da abstracção.

Visto que não é abstracto ainda, esse conceito é concreto. Mas, visto que caminha para a abstracção, esse conceito não é inteiramente concreto. De que modo é concreto então? Podemos fazer várias hipóteses sobre como do concreto se chegou ao abstracto. A que logo ocorre, e logo é posta de parte, porque é ingénua e falsa, porque em círculo vicioso, é a de que o homem, reparando nas semelhanças entre as várias árvores, vá chegando à ideia de árvore; ou de que vá obtendo ideias primeiro, por exemplo, do carvalho, depois do abeto, e assim em diante, até, através dessas ideias, pelo mesmo processo, encontrar a ideia abstracta de árvore. Ambas estas hipóteses — duas formas, aliás, da mesma hipótese — pressupõem, porém, a já existência das ideias abstractas, por isso que o processo mental hipotetizado em elas mais não é do que um processo de abstracção, que subentende, portanto, que a abstracção já existe. É o género de hipótese que um homem civilizado forma quando desleixadamente, para fazer ideia de como um selvagem chegaria às ideias abstractas, abusivamente concebe que ele, civilizado, as não tenha, e a si próprio

pergunta como as obteria se as não tivesse. Como não elimina de sua ideia, de seu espírito, as ideias abstractas, naturalmente supõe que as obteria por um modo que

pressupõe que ele já as tenha.

Não foi este, por isso, o processo mental que o homem seguiu ao passar do pensamento concreto para o pensamento abstracto. Qual foi então? Reconstruamos, com os elementos que sabemos que temos, qual pudesse ter sido.

Vendo a árvore florir, verdecer, dar fruto, murchar nas suas folhas, e perdê-las; depois, reverdecer, dar outra vez flor e fruto, e assim indefinidamente, o homem primitivo, que colhia, aliás, nos frutos um proveito dessa actividade ou vida da árvore, passou a reparar nos fenómenos de vida vegetal, no florescer, no frutificar, na primavera e no outono dos arvoredos. De aí, logo, um resultado: a cisão da noção concreta de tal árvore em duas coisas — uma, observada como estática, a árvore propriamente que permanecia sob a florescência, a frutificação e a queda das folhas; outra, vista como dinâmica, essa florescência, essa frutificação, essa velhice vegetal. Assim, a noção concreta da árvore, sem deixar de ser concreta, cinde-se em duas noções concretas, e no fenómeno «tal árvore», concreto em absoluto, a própria observação concreta abre brecha, cindindo-o em dois fenómenos concretos, apresentando, à mesma própria observação, os dois visíveis característicos opostos, de árvore-que-fica, de verdura-que-passa.

Sucede, a seguir, que o homem repara que esses fenómenos de vida vegetal se dão em todas as árvores. E se bem que não possa, no seu estádio de atraso mental, conceber a ideia de «árvore» abstracta, porque sempre tal árvore aqui, com tal aspecto e em tal lugar tal-outra árvore além, com tal-outro aspecto e em tal-outro lugar, já o mesmo não acontece com os fenómenos de vida vegetal que se dão em ambas árvores: esses fenómenos são dinâmicos, por isso chamam a atenção de outra maneira do que os estáticos, e o cérebro primitivo, que não vê semelhança entre árvore e árvore, porque árvore e árvore são coisas paradas e visíveis, permanentes e por assim dizer imutáveis, não pode fugir contudo a reparar que há semelhança entre os fenómenos que se dão em essa árvore e essoutra, porque a natureza transitória desses fenómenos faz atender a eles, a utilidade que a frutificação traz mais chama, para eles a atenção, e o geral carácter de estranheza, porque não são coisas quotidianas e habituais, mas sim periódicas, que esses fenómenos têm chama sobre eles uma atenção curiosa e não casual, e isso provoca a que se veja a semelhança entre a florescência de uma árvore e a florescência de outra árvore. Logo que esta semelhança é vista, está encontrada uma ideia concreta que serve de aproximação de duas ideias concretas: a de florescência servindo de aproximação de tal árvore e tal-outra árvore.

Esta noção de florescência, noção concreta, porque de uma coisa concreta, tem porém um característico especial. A florescência é uma coisa que não tem um lugar certo, mas sim vários lugares — todas as árvores e plantas onde se dá. Assim, fatalmente, a própria noção concreta de florescência tem uma feição especial que a distingue de todas as outras noções concretas — salvo, é claro, as que, do mesmo género, serviram ao mesmo processo mental. :É uma noção, por assim dizer, dispersa; é uma noção dinâmica; é uma noção, por último — e reparemos bem neste ponto — de uma coisa útil, ao contrário da de árvore-tal-árvore, como o primitivo a concebe — que não serve para nada.

Encaminha-nos isto para uma consideração do estado social do homem primitivo que podia já ter estes pensamentos. Num período de absoluta selvajaria, de primitividade íntegra, eles não podiam aparecer. Só quando começou a domesticação dos animais, o cultivo da terra, só nas origens próprias da agricultura, este tipo de mentalidade pôde aparecer. Antes disso, além de que o acanhado da mentalidade que ainda não tivera artes de domesticar animais não indica que pudesse reparar nem para tão elementares fenómenos como o da frutificação com jeito de reparar deveras, há a ver que só quando uma nítida noção da utilidade — não só da Utilidade em geral, como também da utilidade das florescências e das frutificações — chamou a atenção para esses fenómenos, se esboçaria, e esboçando-se seguiria aumentando em clareza e congruência, uma noção suficientemente concreta da florescência e da frutificação para que pudesse ser caminho para uma noção abstracta; pois que, como provámos, a noção plenamente concreta da florescência é, de sua natureza, um passo para as noções abstractas.

Assim vemos como se entrepenetram os fenómenos social e psíquico na criação das ideias abstractas. Na época mental do homem em que ele pode chegar a um estado social que lhe permite formar-se a ideia de Útil — nessa época um concomitante e conexo fenómeno mental o faz atingir com atenção aqueles fenómenos do concreto que são de natureza a conduzi-lo às ideias abstractas.

O princípio das religiões está na divinização do fenómeno vegetal, e no de outros fenómenos da mesma natureza útil, dinâmica (...) Assim vemos que todos os deuses se reduzem a combinações e misturas de dois (três) géneros de deuses: os deuses da vegetação, e os deuses solares e astrais, por assim dizer.

Do mesmo modo, vemos que as religiões, propriamente tais, apareceram quando da transição do homem do estado mental puramente concreto para o já capaz de abstracção. E observa-se, de feito, que tal é o característico mental de todas as ideias religiosas, tanto das do paganismo como das outras. O conceito de Deus que entre nós uma criatura religiosa, seja embora educada, faz, pertence a um género

de ideação que não é concreta nem abstracta.

Os deuses são as ideias humanas em passagem de noções concretas para ideias abstractas.

(My hypothesis that all progress is based on a degeneration : Seria a transição do concreto para o abstracto por uma perda gradual da noção clara e sadia do concreto? A hipótese de que a transição dum período para outro procede através de um adoecimento é assim: há uma decadência, mas essa decadência, ao passo que é um prolongamento das coisas que existem nesse período, é, ao mesmo tempo, um aparecer de coisas novas que são o resultado da acção do fenómeno decadência sobre o fenómeno «tal estado de coisas»; assim aparece outro fenómeno. Depois esse fenómeno, em virtude de reacções contra ele do que há de são na sociedade, transforma-se em uma nova ordem de coisas. Se não há essa reacção, dá-se uma dissolução social. Entenda-se: todo o progresso provém de uma síntese de três elementos: 1) (duvidoso) os elementos componentes de um estádio civilizacional; 2) os elementos de decadência desse estádio; 3) os elementos que reagem contra essa decadência. Estes últimos, ao mesmo tempo que reagem contra a decadência desses elementos, reagem contra esses próprios elementos, visto que, como nessa ocasião esses elementos só existem em estado de decadência, se se pusessem ao lado deles, isso seria porem-se ao lado da sua decadência, de elementos decadentes, que é a forma em que eles existem.)

(A dissolução de um estádio civilizacional representa: 1) o esgotamento das suas ideias-centrais, isto é, a inadaptação dessas ideias àquilo que o momento exige; 2) a formação, por esse mesmo facto, de essa decadência, de correntes que tentam salvar a sociedade... etc.)

A Índia foi a fase final das religiões do primeiro estádio civilizacional, isto é, o máximo da linha que partiu do homem super-primitivo, e ali chegou a seu ponto abstracto.

A Grécia é um recomeçar. A Grécia é um regresso ao ponto de começo de todos os ciclos civilizacionais: o paganismo grego identifica-se em género à religião primitiva. Mas é uma oitava acima. De modo que de ali sobe a nossa civilizacão. E a Grécia aproveitara já elementos índios, isto é, elementos de uma cultura contrária à sua, porque um fim e ela era um princípio, e porque a Índia era de um estádio civilizacional anterior.

As civilizações vão por grandes ciclos, o fim de cada qual é criar na humanidade um tipo cada vez superior; de abstracção.

A civilização actual tem um característico que a distingue logo dos ciclos anteriores: é a universalidade, o abranger todo o mundo. Que resultado diferencial dará isto?

[...]

Estádios civilizacionais:

a) aquele em que o homem domesticou os animais, o que deu origem à agricultura; nasceram as ideias de utilidade e de socialidade; nasceu o primeiro grau do conceito abstracto = o do vagamente concreto...

b) aquele em que uma raça superior dominou uma raça inferior e, por assim dizer, a domesticou como aos animais. Neste período nasceu o repouso, e de aí as artes propriamente tais. Nasceu o princípio aristocrático. Nasceu a sociedade propriamente dita.

c) aquele em que uma raça, reproduzindo o fenómeno anterior dentro de si própria, se separou em senhores e escravos ou inferiores. A nossa civilização é isto evoluindo.

1917?

Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.

 - 304.

Regresso dos Deuses?