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Filosofia

9. Real

Não há certezas objectivas acerca do que é real.
[ilustração: Teresa Dias Coelho. «Dores». Pintura. 1994
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«A confiança no carácter objectivo das nossas percepções é um sintoma de ignorância ou de loucura.»
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A certeza — isto é, a confiança no carácter objectivo das nossas percepções, e na conformidade das nossas ideias com a «realidade» ou a «verdade» — é um sintoma de ignorância ou de loucura. O homem mentalmente são não está certo de nada, isto é, vive numa incerteza mental constante; quer dizer, numa instabilidade mental permanente; e, como a instabilidade mental permanente é um sintoma mórbido, o homem são é um homem doente.

Acumulei no parágrafo primeiro deste escrito estes, não só paradoxos, mas paradoxos contraditórios para que desde logo o leitor visse claramente, por não ver claramente, em que rede de ideias nos enleamos se queremos distinguir com qualquer espécie de clareza em que fundamentos assentam os conhecimentos. Passo agora a demonstrar o que disse sucinta e paradoxalmente.

Distinguirei, no fenómeno chamado certeza, a parte subjectiva e a objectiva — a certeza em si, e aquilo de que há certeza. Considerada em si, a certeza nada vale. Nenhum de nós tem mais certeza de ter diante de si esta página que tem um perseguido de estar sendo perseguido por numerosos «inimigos», ou um megalómano de ser Jesus Cristo, ou Deus, ou Imperador do Mundo. O lugar das certezas absolutas, inteiras, que não sentem dúvida nem hesitação, é o manicómio.

Pode arguir-se que é perfeitamente «demonstrável» que o louco que se julga Jesus Cristo não é realmente Jesus Cristo. É demonstrável como? É demonstrável a quem? Como demonstraremos que ele não é Jesus Cristo? Como lhe o demonstraremos a ele ? Para demonstrarmos, absolutamente, que ele não é Jesus Cristo, ou Deus, ou Imperador do Mundo, ou um bule, um balde ou uma pedra, era preciso que tivéssemos sobre estes objectos ou ideias uma ideia absoluta; ora de todos eles — e, no fundo, igualmente — não temos outra ideia que não a nossa própria, ou, quando muito, a que é comum a nós e a vários outros indivíduos, isto é, não temos senão uma ideia forçosamente relativa; de onde se vê que o mais que podemos objectar (de longe, para maior segurança) a esse a quem chamamos louco é que para nós ele não é Jesus Cristo, ou Deus, ou Imperador do Mundo, ou bule ou balde ou pedra. Isto, vendo melhor, equivale simplesmente a dizer que temos sobre estes objectos (e sobre ele) uma ideia diferente da que ele tem; o que no fundo vem a significar que ele e nós somos pessoas diferentes. Nem nos vale o valermo-nos do argumento (que o não é senão para os mistificadores que inventaram a democracia) [que] daria como falsa a ideia de que a terra gira à roda do sol, quando a não tinha senão Copérnico, e a humanidade em geral tinha a contrária. Nada nos pode provar que, na realidade absoluta, ou do «outro lado» da aparência das coisas, ele não esteja na ciência e nós na ignorância e no atraso.

Mas, se é já difícil e incerto o conceber-se possível uma impossível demonstração absoluta disso, ou de qualquer coisa, mais difícil, mais impossível (se a expressão pode empregar-se) seria o demonstrar-lhe a ele que não é Jesus Cristo, ou o que quer que seja que se julga. Suponhamo-nos empenhados (por um propósito que devia valer-nos o internamento ao lado dele) em provar a um doido que se julga bule que ele não é com efeito um bule. Pegamos ingenuamente num bule e pomo-lo defronte dele; feito isto, perguntamos-lhe: «Isto é que é um bule; ora veja bem — o senhor parece-se com isto?» Ele responder-nos-á, ou «isso não é um bule; eu é que sou um verdadeiro bule»; ou «sim senhor: sou perfeitamente igual a esse bule». A este argumento, o que objectaremos, que valha, quer para ele, quer até para nós como racionadores? Não poderemos objectar nada. O que, no fundo, queremos fazer é negar a objectividade das impressões dele. As impressões dele, porém, são dele, que não nossas; ele é que as sente, e legitimamente não pode aceitar — como nós não aceitaríamos se ele quisesse converter-nos ao seu ponto de vista — uma crítica das suas impressões vinda inteiramente do exterior, isto é, vinda de quem as não sente e não pode portanto legitimamente criticá-las. Só se estivéssemos dentro dele, dentro do espírito dele, é que poderíamos criticar as suas impressões, que seriam também as nossas; mas é possível, que então, com esta crítica dentro de si, ele não se julgue já bule — ou (quem sabe?) se julgasse muito mais bule do que dantes.

                                *

Posto, assim, e assim assente, que a certeza tem um carácter puramente subjectivo, desde logo reparamos que nenhuma certeza pode verdadeiramente prevalecer objectivamente sobre outra. Numa sociedade, ou agrupamento, onde haja um número a de pessoas e haja 1 com uma certeza e a -1 com outra, nada prova que a «verdade» ou objectividade esteja mais do lado do 1 do que do lado do a -1, pois que a -1 subjectividades não somam objectividade, pela mesma razão que quatro cavalos não somam um elefante. O mais que pode concluir-se de haver a -1 certezas de um lado e 1 do outro é que há a -1 pessoas subjectivamente, ou mentalmente, parecidas — pelo menos em relação ao assunto sobre que estão em certeza —, e 1 pessoa que se não parece com essas. Redunda tudo, em última análise, numa questão de semelhança e dessemelhança temperamental ou mental, e isto nada adianta quanto à «verdade» objectiva do assunto sobre que se dá a divergência de «certezas».

Uma objecção desde logo ocorre. O critério da objectividade (dir-se-á) é a mesma objectividade; basta que encontremos um processo de verificação liberto de elementos subjectivos para que, pelo menos em certo modo, a objectividade de um fenómeno se possa determinar. É esse o género de investigação a que chamamos científica. Faz-se ela de três modos — por observação directa, por cálculo, e por observação indirecta (que consiste no emprego de aparelhos especiais) .

Quanto mais examinarmos esta objecção, mais profundamente verificaremos que em nenhum ponto ela colhe. A observação directa, evidentemente, deixa-nos no mesmo caso em que estávamos, entregues às nossas subjectividades, corrigendas apenas umas pelas outras e sempre fora da objectividade verdadeira. O cálculo adquire já, aparentemente, uma meia-objectividade, que é a objectividade abstracta da matemática. A matemática, porém, é puramente uma criação do espírito — seja do espírito em plena abstracção, seja do espírito em abstracção de impressões sensoriais primárias, o que para o caso não importa. A «certeza» da matemática é uma certeza só dentro da matemática; o que chamamos 2 somado ao que chamamos 3 dá o que chamamos 5, mas que certeza temos que quando vemos 2 e 3 no mundo «externo» haja ali realmente 2 e 3, e não 4 e 7 por exemplo? Que certeza temos que haja nesse mundo «externo» qualquer coisa efectivamente designável como 2 e 3? O cálculo matemático, longe de nos aproximar de uma «objectividade» certamente objectiva, antes dela nos afasta, pois é apenas um critério subjectivo de verificar impressões que são forçosamente subjectivas: onde julgamos ter uma objectividade temos apenas duas subjectividades.

A investigação por meio de aparelhos parece, à primeira vista, oferecer um processo seguro, ou pelo menos mais seguro que qualquer outro, de se chegar à objectividade. Não é assim. Esses aparelhos, sobre serem fabricados por nós, isto é, sob a acção construtiva de impressões nossas, hão, ainda, de ser lidos por nós; e aqui estamos outra vez trazidos à nossa subjectividade. Acresce — para que vamos até ao fim exacto do argumento legítimo — que não sabemos até que ponto podemos influenciar aparelhos. Não é impossível que possamos projectar alucinações, se elas forem suficientemente fortes ou suficientemente emitidas de qualquer modo especial, sobre aparelhos que construímos; é concebível que uma chapa fotográfica possa receber uma emissão de imagens puramente «mentais», que ela possa ser, por assim dizer, hipnotizável. Tanto quanto podemos avaliar, a constituição da matéria parece ser uniforme, e a mesma portanto no nosso corpo e cérebro que nos seres a que chamamos inorgânicos; nem vem para o caso o objectar-se que essa uniformidade e essa matéria também são conceitos nossos, porque não vem para o caso objectar precisamente o que o opositor quer provar. E, se a constituição da matéria é assim idêntica, nada obsta a que creiamos que as imagens mentais são emissisíveis materialmente, são ou fenómenos de emissão etérica, ou qualquer coisa assim, ou acompanhadas por tais fenómenos, e não seja portanto possível que uma chapa fotográfica seja impressionada por essa emissão mental do mesmo modo que o é por uma emissão a que chamamos «luminosa».

Assente, pois, que a certeza em si não é certeza, que não há passagem lógica da subjectividade da certeza para a objectividade da verdade ou realidade, resta que investiguemos se essa passagem se pode encontrar estudando nós, não a certeza em si, subjectiva, senão a certeza objectiva, ou seja o conteúdo da certeza, aquilo de que há certeza.

Revertamos ao exemplo, propositadamente grotesco, que nos serviu convenientemente de ponto de partida. Vimos já, levando a análise até os seus últimos escaninhos, que, considerada, a certeza em si, e o seu conteúdo como objecto de certeza, não há mais objectividade na nossa certeza de que temos diante de nós esta página de papel que na certeza do megalómano de que é Jesus Cristo ou do delirante de que é um bule. Procuremos agora estabelecer qualquer diferença entre essas duas certezas por meio de seus conteúdos.

s.d.

Textos Filosóficos . Vol. II. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968.

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