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Filosofia

1. António Mora

António Mora, o heterónimo filósofo, escreve uma Introdução ao Estudo da Metafísica.
[ilustração: Carlos Calvet. «Edificiária». 1958.
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«A filosofia deve passar a ser uma arte — a arte de construir sistemas do universo, sem outro fim que o de entreter e distrair.»
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António Mora:

INTR[ODUÇÃO] AO ESTUDO DA METAF[ÍSIC]A

Princípios basilares

1. Há só duas realidades: a Consciência e a Matéria.

2. A Consciência é para nós incognoscível; só podemos saber que ela é consciência. Mas não é só isto. Não pode ser conhecida, não há que haver conhecimento dela. Aquilo a que se chama «conhecimento» é uma coisa que só se pode ter do mundo exterior. Conhecer uma coisa é apreendê‑la sob quantos aspectos ela comporta sob os nossos sentidos. Não pode portanto haver conhecimento da Consciência; porque, mesmo que conhecimento signifique propriamente consciência, não há consciência da consciência, por muito que pareça que a há. A consciência é.

3. O mundo‑exterior é real como nos é dado. As diferenças que há entre a minha visão do mundo e a dos outros é uma diferença de sistemas nervosos. Os sistemas nervosos são partes dessa realidade exterior. (...) A ciência estuda — não as leis fundamentais do mundo‑exterior, ou Realidade, porque não há leis fundamentais do mundo‑exterior: ela é a sua própria lei — mas as normas segundo as quais os fenómenos se manifestam, isto, não com o fim de saber, mas com o fim de utilizar para nosso conforto e proveito os «conhecimentos» adquiridos.

4. Toda a filosofia labora num p[rimeir]o erro que consiste fundamentalmente em atribuir à Matéria qualidades que nos vêm de analisar ou «ter consciência» do nosso espírito, e num segundo erro maior que consiste em atribuir ao (nosso) espírito, à Consciência em geral, qualidades que provêm de termos cada um um psiquismo; o que afinal depende de termos, cada um, um corpo. A filosofia é um antropomorfismo em todos os sistemas; atribuímos à Natureza as qualidades que nós temos — ter um todo, como nós; etc. E a espontânea atitude poética de atribuir sentimentos aos rios, às pedras, etc., provém precisamente do mesmo antropomorfismo fundamental do nosso espírito.

5. Quanto mais a evolução se complica mais complexo e nítido vai sendo o nosso senso da Realidade. Ela é cada vez mais real, mais material. Se a «espiritualidade» importa um apagamento do senso das coisas, nada há tão espiritual como uma amiba, e um pargo ou uma pescada têm vantagens espirituais sobre o homem. O espiritualismo, o idealismo são estados regressivos da mentalidade humana; como que saudades de épocas pré‑humanas do cérebro em que o Exterior era menos complexo. A tendência espiritualista ou idealista é uma incapacidade de arcar de frente com a complexidade da Natureza. Querer simplificar a Natureza é querer ter dela um sentido de peixe ou de invertebrado mesmo.

6. Querer encontrar às coisas um íntimo sentido, uma «explicação» qualquer é, no fundo, querer simplificá‑las, querer pô‑las num nível em que caiam sob um sentido só — o que aconteceu em épocas idas a bichos nossos antepassados pouco abundantes de sentidos.

7. A função própria da inteligência é servir a vida. O emprego da inteligência, em filosofar, só pode ter, pois, legitimamente, um qualquer sentido utilitário. (Querer descobrir a verdade pode ter um fim utilitário no conceito religioso de querer saber qual deve ser a nossa conduta, para obter o paraíso, por ex.). A Ciência deve servir a vida. A arte tem por fim repousar o espírito. É o sono das civilizações. A filosofia entra na categoria da arte. — A filosofia foi primeiro uma «ciência»: tinha por fim descobrir a verdade para o fim utilitário de nos governarmos na vida; porque, se se julga que há uma vida futura, com castigos e recompensas, não é por certo pouco importante saber‑se o que se deve fazer para evitar uns e merecer outros. Hoje a filosofia deve passar a ser uma arte — a arte de construir sistemas do Universo, sem outro fim que o de entreter e distrair, publicando belos sistemas.

8. Todos os sistemas filosóficos devem ser estudados como obras de arte. (Nenhuma arte é feita com o fim de entreter, mas é para isso que ela serve. O artista toma o seu papel mais a sério (...)

9. A Vida não tem sentido nenhum.

10. A Beleza não existe. É um modo de repouso do espírito. O espírito, à medida que aumenta a sua actividade, busca novos modos de repouso. A arte é o mais elevado deles.

11. A maioria das manifestações, a que é uso chamar superiores, do nosso espírito, são realmente regressos doentios a estados de consciência anteriores à humanidade. Já se mostrou que o sono dos faquires é uma regressão ao sono hibernal de certos animais. — O domínio do corpo, que os ditos «iniciados» índios e outros pregam, mais não é do que um desvio da inibição. Ex.: O normal seria dominar o corpo pelo corpo — como na grande criação científica do sistema ginástico de Lings.

12. Todas as manifestações do espírito humano passam por três períodos — no primeiro, elas, rudimentares então, são um modo de procurar repouso e variedade; no segundo, são um modo de procurar repouso ainda, mas buscando‑o não já pelo sossego dos sentidos, senão que pelo sossego dos sentimentos; no terceiro período, procura‑se ainda obter repouso, mas então o processo é procurar sossegar a inteligência. O espírito humano evolui do simples para o complexo, e é preciso notar que o clássico é que é o complexo e o romântico é que é o simples. — Na arte, exemplificando: o primitivo, que vive só de sentidos, ou predominantemente dos sentidos, busca com a sua arte rudimentar, repousar da vida entretendo os sentidos com cores vivas, ruídos violentos, movimentos excitantes; o homem que avançou mais um passo, e é já civilizado, procura, porque criou sentimentos definidos, sossegar esses sentimentos, entretê‑los, e entretê‑los é dar expressão ao seu conteúdo; o homem chegado ao limite do seu desenvolvimento criou já um estado definido de inteligência, e esse procura sossegar a sua inteligência não já dando expressão a sentimentos ou satisfazendo as rudimentares exigências dos sentidos, mas (...) No terceiro período atingiu‑se a plena abstracção, isto é, o poder pleno de medir uma coisa intelectualmente (...).

Com os gregos nasceu a ciência propriamente dita, o espírito científico, a mentalidade superior. Antes disso bastava, ao fazer filosofia, criar um sistema que não se contradissesse a si próprio; depois passou a ser preciso criar um sistema que não contradissesse os factos. Os factos nasceram na Grécia.

Só na Grécia é que a filosofia começou pròpriamente a separar‑se da religião; a não buscar, portanto, satisfazer os nossos sentimentos, mas a noção das coisas.

1915?

Textos Filosóficos . Vol. I. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968 (imp. 1993).

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