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Filosofia

13. Religião

António Mora discute o problema da religião vista pela ciência sociológica.
[ilustração: Almada Negreiros (1893-1970). «Prece» (Ilustração para Mensagem). 1934.
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«Religião e ciência são duas atitudes metafísicas, a qualquer das quais não pertence nenhuma superioridade.»
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Mas o problema essencial da democracia moderna está na maneira como se hão-de conciliar o princípio democrático, que, seja porque razões seja, se tornou necessário às sociedades modernas (e talvez, se virmos bem, a todas as sociedades) e aquele princípio aristocrático que evidentemente constitui a base de tudo quanto seja orientação e governo.

O que há de mais interessante na dificuldade de resolver este problema é que as soluções têm constantemente sido procuradas fora da esfera onde elas devem estar; há outro detalhe mais interessante ainda, que é que a solução, que se procura, já fora encontrada. E, a não ser essa a solução a aplicar, não há outra possível que não seja no mesmo género.

Essa solução é a religião cristã; aí se encontram, unidos, de seu início, os sentimentos aristocrático e democrático (popular). O livre-pensamento moderno, com o seu feitio dogmático e categórico, herdado que foi do pior dogmatismo religioso, nunca podia encontrar esta solução, porque, não sendo realmente livre-pensamento não a podia procurar. O livre-pensador parte do princípio que tem de encontrar a solução para esse (como para qualquer outro) problema fora da religião: assim a sua liberdade começa por um dogmatismo. O livre-pensador exclui um elemento social (a religião) ao procurar resolver problemas sociais; nunca pergunta a si-próprio se a solução não estará acaso nesse fenómeno religioso, que arbitrariamente excluiu. A sua orientação nem sequer é decentemente sociológica. porque procura sempre soluções sociais desprezado um elemento social, não quero já dizer importante (ainda que sem receio o pudesse afirmar) mas pelo menos existente, e que durante séculos foi predominante.

Não há diferença na atitude sociológica de um Bossuet da atitude sociológica de qualquer livre-pensador moderno. Para um a religião domina tudo, e tudo quanto existe é subordinado a um critério religioso; para o outro a religião não importa nada, e nada do que existe depende de uma possível verdade religiosa. Qualquer dos critérios pode ser metafisicamente certo; o que se não pode negar é que qualquer deles é - e ambos da mesma maneira - sociologicamente falso. Herbert Spencer, se virmos bem, é de um dogmatismo que só não deliciaria Bossuet porque é ao contrário do dogmatismo de Bossuet.

Quando nós encaramos o problema religioso pelo critério sociológico, nós devemos contar (para sermos imparciais realmente) com a possibilidade, que os nossos maiores admitiam como realidade, de que o fenómeno religioso fosse especial e dominasse tudo. Porque afasta o sociólogo, sem mais pensar, esse critério do seu modo de estudar os fenómenos sociais?

Pensa ele, bem o sabemos, que a ciência não pode admitir uma supremacia religiosa; admittir isso seria, para ele, violar a atitude da ciência. Não repara ele, porém, que, assim agindo, não fez senão substituir a ciência à religião. Ele, subordinando tudo a um critério científico, o que faz senão subordinar tudo à ciência? E em que difere esse fenómeno da subordinação de tudo à religião, que caracterizava a attitude dos nossos maiores, senão em que num caso se trata de ciência, e no outro caso se trata de religião?

Há na ciência qualquer princípio, qualquer fórmula determinante, que torne essencial essa subordinação? A ciência parte do princípio que tudo são factos, a religião como qualquer outro; por isso, diz ela, sem parti-pris contra a fé, mas também sem parti-pris contra ela, estuda os factos do mundo imparcialmente. Sucede, porém, que a religião é uma coisa perante a qual se não pode ser imparcial; ou se é contra ela ou a favor dela. A religião diz que é o fenómeno supremo da terra; se a ciência a colocar ao lado dos outros factos, por grande que seja o respeito com que o fizer, já vai contra ela. A religião parte do princípio que o mundo é uma soma de fenómenos, mas que acima desses fenómenos, como fenómeno diferente deles, está a religião; se a ciência, ainda que brandamente, não aceita esta subordinação de tudo à religião, já não aceita a religião; direi mais, já a ataca, por que lhe nega precisamente o que ela tem de essencial, que é o ditar-se suprema sobre todos os factos e de uma categoria diferente deles.

É facil dizer-se, e é o que lembra, que nestas condições nenhuma ciência é possível. Porque, sendo as condições essas, a ciência teria, para poder prosseguir, que começar por criticar a atitude religiosa, por discutir preliminarmente a posição da religião no mundo. Para poder trabalhar naquelas condições em que hoje de chofre trabalha, devia a ciência começar por afirmar o seu direito a fazê-lo. Isto é, a ciência deve começar por uma discussão metafísica.

Mas, do momento que entramos no campo da especulação, passamos já, pelo próprio facto, do campo científico. Do ponto de vista metafísico, religião e ciência são duas atitudes metafísicas, a qualquer das quais não pertence, à priori, nenhuma superioridade sobre a outra. Qualquer delas quer envolver a outra, neste combate pela alma humana. A religião quer subordinar a ciência a si. A ciência quer colocar a religião no terreno dos factos. À priori, sem mais nada, a nenhuma assiste, para o que quer, mais direito do que à outra.

Das duas atitudes, que, vistos assim bem os factos, ficam metafisicamente com um valor igual, qual é a que presumivelmente deva dominar o espírito? Se assentámos que são duas atitudes metafísicas, não iremos empregar argumentos metafísicos sobre o assunto; porque não é esse o ponto que queremos versar, e, versado, indefinida seria a discussão.

Queremos apenas examinar qual seja preferível, sob o ponto de vista social, que tomemos para nosso guia. E, assim, se algum método empregamos, é um método antes científico do que outra coisa, porque buscamos apenas ver qual das duas atitudes - a científica ou a religiosa - mais nos serve como atitude social. Se são duas atitudes metafísicas, vimos, nenhuma preferência lógica pode determinar-nos seguramente por uma ou por outra. Empreguemos, pois, o único critério que nos resta, que é o da utilidade social. Terá esse uma resposta para as nossas dúvidas?

Um dos pontos capitais do problema deve resultar do exame comparado das actividades científica e religiosa num sentido especial. Explico melhor. Ambas essas actividades correspondem a necessidades humanas. Será, pois, segundo o critério social que vamos seguindo, superior aquela que mais liberdade deixar à outra para satisfazer os seus interesses.

A ciência, como se viu, integra a religião na categoria dos factos sociais; não por uma intolerância especial, mas é que a atitude científica não pode ser outra. Para isso, como vimos, ela tem inevitavelmente que atacar o princípio central da religião, que é o de que ela é superior às outras manifestações sociais, e injulgável por elas, por qualquer delas.

A religião deixa livre à ciência todo o campo dos fenómenos, proibindo-lhe apenas (e se o não fizesse, não seria a religião) duas ordens de coisas: que a integra, a ela religião, no domínio dos factos sociais como fenómeno; e que entre no seu domínio metafísico, discutindo os seus princípios. O segundo caso é fácil à ciência; por sua natureza ela não discute problemas metafísicos, por isso não vai criticar a religião nesse campo. O primeiro é mais difícil. Como se há-de constituir a sociologia, se se lhe levanta um obstáculo desta ordem? Quantos argumentos se façam sobre o assunto são especiosos; o facto é que neste ponto a religião limita a actividade científica. Bem sei que se pode sofismar o problema, dizendo que a religião se divide em factos sociais e factos metafísicos (por assim falar) e que são estes últimos que a ciência não pode investigar (o que aliás já se sabia). Mas uma religião é uma metafísica materializada, e não pode ser separado o seu conteúdo metafísico do seu conteúdo social, sem o que não seria uma religião, mas apenas um sistema de filosofia.

Resulta, pois, da nossa investigação, que tanto a ciência, admitida como princípio supremo, limita a religião, como esta, assim admitida, limita aquela. Mas a ciência, admitida como princípio supremo, limita toda a religião; e a religião limita apenas uma pequena parte da ciência, que é a ciência sociológica (e, ainda assim, não é seguro que limite toda essa ciência). A esta conclusão chegamos, pois: o critério religioso é mais liberal que o critério científico, visto que, ao passo que o critério científico procura tiranizar integralmente a religião, a religião não oprime senão uma diminuta parte da ciência.

(Permaneceu o conflito? É certo. Mas só um indivíduo muito ignorante pode julgar que há soluções definitivas na vida, que todo o problema tem uma solução.)

Outro ponto de vista há a empregar no estudo deste problema. Qual dos dois fenómenos tem mais importância a dentro da sociedade e da sua vida?

Historicamente, o problema não tem discussão possível. A religião data das origens da humanidade; ela sempre acompanhou a humanidade. A ciência, que, num grau pequeno e relativo, também sempre houve, pouco avultou na vida humana, pouco significou, antes da nossa época, na vida das sociedades.

Mas se o problema historicamente se resolve assim, de que outra maneira é que se pode conceber que ele se resolva em absoluto? Não avancemos, porém; não sentenciemos, desde logo, que ela é essencial à humanidade, por isso que sempre o foi. Não admitamos tanto; a solução do problema pode fazer-se sem essa concessão ao lado religioso do argumento.

A ciência é, de sua natureza, um fenómeno exclusivamente intelectual. Da atitude científica exclui-se toda a emoção. Os resultados da ciência não trazem consigo, salvo num restrito sentido estético, elementos emotivos. Ora, se há coisa constatada, é que a vida humana é predominantemente emotiva. Mas isso é a vida humana em geral. Acima dessa vida emotiva, paira - arte, ciência, filosofia - a vida intelectual dos homens; neste caso vida restrita a um escol a dentro das sociedades. A ciência, sendo apenas intelectual e mesmo no parcamente emotiva que é, reflexamente emotiva ainda assim, não satisfaz senão as necessidades intelectuais dos homens. Produz assim um resultado duplamente funesto, supondo que se adopte como critério social. Duplamente funesto: não chega às massas do povo, e, a dentro do escol, não satisfaz em cada homem senão parte da sua natureza, a parte intelectual.

Tal não acontece ao fenómeno religioso. Uma religião é ao mesmo tempo emocional e intelectual, por isso que, ao mesmo tempo que é uma dogmática e uma mitologia, é uma metafísica. Uma religião tem, de um lado, a missa, as festas, os cerimoniais seus; do outro os seus filósofos e os seus místicos. Por isso a religião dirige-se, ao mesmo tempo que à massa dos homens, ao escol entre eles. Ao mesmo tempo que satisfaz a emoção do sábio, dá-lhe repasto à sua inteligência. Como fenómeno humano, social, a religião é, pois, mais completa do que a ciência, mais equilibrada do que a ciência; mais humana do que a ciência.

A esta constatação outra se liga. Como conjuntos, as sociedades vivem da emoção; como indivíduos, vivem da inteligência, a capacidade de cada indivíduo para viver isolado dependendo, excluídas circunstâncias de excepção, do seu poder de pensar - seja esse pensamento o pensamento abstrato ou frio do cientista, o pensamento construtivo do poeta e do filósofo, ou o pensamento puramente emotivo do místico. Um fenómeno do género da ciência, dominando uma sociedade, desintegra-a, por isso que, não tendo carácter emocional, não pode ligar os homens, que só pela emoção se ligam. E há mais. Age sobre as massas, não eliminando-lhes a emoção, porque essa persiste sempre (porque se trata de homens e não de títeres ou abstracções), mas de uma de três maneiras, todas elas anti-sociais: diminuindo essa emoção (o que importa diminuir nas sociedades o poder de coesão de que a sua vitalidade evidentemente depende); deixando de pé só aquelas emoções em que não pode tocar (e essas são as emoções de ordem egoísta, como a estética), e estas, por existirem fracamente nas massas, tomam formas erróneas e absurdas, por isso que são de sua natureza aristocráticas, de onde resulta um abaixamento do nível não só emocional, mas também intelectual do povo, uma atribuição delle a si-próprio de atitudes mentais que não pode ter, e que em períodos sãos não procura ter, senão no seu nível, que é o religioso; e, finalmente, deixando numa liberdade maior aqueles instintos e emoções que, por fundamentais, nada pode abalar, se bem que os possa restringir e disciplinar. E daqui resulta que desaparece o freio «absurdo» da religião sobre os costumes e os instintos, e estes se desenfreiam, pois que, por «absurdo» que esse freio possa ser, o facto é que é o único que existe, porque é o único que age sobre as emoções.

A toda esta argumentação - que com facilidade poderia ser desdobrada em raciocínios multiplicadamente eficazes - poder-se-ia não responder, mas opor uma objecção relativa. É esta: o que acontece, então, ao amor à verdade, puro e desinteressado, do homem de ciência? o que é feito da liberdade do artista, de seguir irrestrito a sua inspiração? o que resulta para o filósofo, que queira construir o seu sistema livre do peso externo, e até interno, da fé popular e geral?

A esta objecção há duas respostas. A primeira é a dos factos. Nada há nas religiões que as tenha inibido de produzir grandes artistas, grandes homens de ciência, grandes filósofos. Dante não será um grande poeta? O livro de Cervantes será de um pigmeu, porque seja de uma época católica? Shakespeare resulta tacanho, porque seja católica a atitude do seu espírito, como qualquer pode ver, que queira dar-se a vê-lo? Que época produziu maiores filósofos - a nossa época, de plena liberdade de pensamento, ou aquelas em que pesava sobre os espíritos, quando não exteriormente, interiormente, o peso da religião? Com todo o respeito possível para com Comte e Spenser, eles serão, acaso, espíritos que se comparem com os antigos filósofos - Spinoza, Leibnitz. Além disso, a crítica da atmosfera religiosa produz maiores espíritos que aquela que se exerce no vácuo. Kant assim surgiu.

A desastrada argumentação que citaria para o caso as circunstâncias que oprimiram Galileu e Servet, esqueceria sem dúvida que estava confundindo o predomínio religioso com a falta de civilização. São dois factos que importa não confundir. Se nós víssemos que nesses tempos as penalidades criminais eram de uma suavidade enorme, que eram de uma leniência acentuada as sentenças dos juízes, e que ao mesmo tempo esses herejes aparecessem queimados, enforcados, mortos, seria então o caso de atribuir à religião uma culpa que ela efectivamente teria. Mas a religião defendia-se, como é natural, e defendia-se com as armas do tempo; com as mesmas armas com que se defendia qualquer estado. Hoje a um livro herético responde, pela brandura dos costumes do tempo, uma proibição dum bispo de que os seus diocesanos leiam; ao tempo, que era de crueldade em tudo, correspondiam os processos do tempo. Débil crítério têm, em matéria social, aqueles que não vêem estes factos.

A outra resposta é psicológica. Ela não faz, de resto, senão confirmar o que os factos ensinam. Nem podia deixar de assim ser. Quando se afirma que a fé prejudicará as investigações do cientista, as elocubrações do filósofo e a inspiração do poeta, fazem-se duas suposições arbitrárias: uma, que esse poeta necessariamente quererá escrever fora do âmbito dessa fé, esse filósofo explicar o universo em contradição com os princípios dessa fé, esse cientista investigar precisamente aquelas coisas que a religião proíbe, e que, vimo-lo bem, muito poucas são; outra, que esse poeta, esse filósofo, esse homem de ciência, não ousarão quebrar com esse peso religioso. Uma doutrina qualquer é grande não só pelo que produz directamente, como também pelo que produz indirectamente; tanto pelo que produz nos espíritos que domina, como nos espíritos que revolta contra si. Arguir-se-ia, talvez, que nenhuma religião pode desejar que contra ela se ergam. É certo, mas não se deve esquecer que este argumento é sociológico não religioso, que estamos estudando, não os resultados duma religião dominando todos os espíritos, o que é impossível, mas uma religião existindo normalmente, como qualquer religião do mundo.

A hipótese de que uma religião forçosamente será dogmática e fanática, sofre do erro de se supor que toda a religião só pode existir num período de ignorância e de fanatismo. Porque o fanatismo é anterior (socialmente falando) à religião; a religião não dá a uma sociedade um fanatismo que lá não esteja, como não há processo que arranque figos duma laranjeira.

Mas não será assim? Não haverá incompatibilidade entre cultura e religião? É um aspecto do problema que é preciso não abandonar sem exame.

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

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