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Heteronímia

22. Fernando Pessoa

Pessoa ortónimo é também uma personagem deste drama heteronímico.
[ilustração: Silhueta de Fernando Pessoa.
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«Este homem, tão inutilmente bem dotado, teve naquele momento a sua libertação.»
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Toda a antiga civilização pagã, que para Caeiro era o próprio sangue da alma, era, e é, para Reis uma memória querida da infância - uma educação que se entranha no ser.

Desorientou-me, primeiro, este homem que cantava alegremente coisas que, inventadas ou supostas, não dão senão pena ou horror a todos - a materialidade, a morte, o não-além. Desorientou-me, segundo, que não só o fizesse com alegria, mas que transmitisse essa alegria aos outros. Quando estou muito triste, leio Caeiro e é uma brisa. Fico logo calmo, cantante e com fé - sim, fico com fé em Deus, na alma, na pequenez transcendente da vida depois de ler os poemas deste ateu de Deus e do homem sem além na própria terra.

E porquê? Porque a personalidade que está por trás da obra, a vitaliza com outra coisa que não é as ideias que lá estão, e por onde ela aparentemente se manifesta. É o poeta Caeiro, não o filósofo Caeiro, que nos ama. O que realmente recebemos daqueles versos é a sensação infantil da vida, com toda a materialidade directa dos conceitos da infância, e toda a espiritualidade vital da esperança e do crescimento, que são do inconsciente, da alma e corpo, da infância. Aquela obra é uma madrugada que nos ergue e anima; e a madrugada, contudo, é mais que material, mais que anti-espiritual, porque é um efeito abstracto, puro vácuo, nada.

A obra de Caeiro tem, porém, e além disto, um efeito crítico. Estes versos da sensação directa, contraposta a sua alma aos nossos conceitos sem naturalidade, à nossa civilização mental, artificiosa, contabilizada em gavetas, rasga-nos todos os trapos que temos por fato, lava-nos a cara da química e o estômago dos farmacêuticos - entra pela nossa casa dentro e mostra-nos que uma mesa de madeira é madeira, madeira, madeira, e que mesa é uma alucinação necessária da nossa vontade que fabrica mesas.

Feliz de quem, um momento que fosse na vida, conseguir ver a mesa como madeira, sentir a mesa como madeira - ver a madeira da mesa sem ver a mesa. Volte depois a «saber» que é mesa, mas toda a vida não esquecerá que ela é madeira. E amará a mesa, mesa como mesa, melhor.

Foi este o efeito de Caeiro sobre mim. Não deixei de ver a aparência das coisas, a sua integridade divina e humana, mas fiquei vendo-as, ao mesmo tempo, na alma material da sua matéria. Fiquei liberto. De então em diante eu era como um daqueles Rosa-Cruz, de quem reza a lenda ou a verdade, que, semelhantes por fora a todos os humanos, e conformes com os costumes e maneiras do mundo igualitário, têm consigo o segredo do Universo e sabem sempre onde está «a porta da fuga» e a magia da essenciação.

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

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«Notas para a recordação do meu mestre Caeiro»