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Heteronímia

23. Fausto

Fausto não é um heterónimo, mas personagem de uma tragédia subjectiva: a busca da Verdade.
[ilustração: João Abel Manta. Caricatura de Pessoa.
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«O conjunto do drama representa a luta entre a Inteligência e a Vida em que a inteligência é sempre vencida.»
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                Primeiro Fausto

O conjunto do drama representa a luta entre a Inteligência e a Vida em que a inteligência é sempre vencida. A Inteligência é representada por Fausto, e a Vida diversamente, segundo as circunstâncias acidentais do drama.

No 1º acto, a luta consiste em a Inteligência querer compreender a Vida, sendo derrotada, e compreendendo só que não pode nunca compreender a vida. Assim, este acto é todo disquisições intelectuais e abstractas, em que o mistério do mundo (tema geral, aliás, da obra inteira, pois que é o tema central da Inteligência) é repetidamente tratado.

No 1º entreacto há a repetição lírica das conclusões a que o protagonista chegará no 1º acto.

No 2º acto a luta passa a ser a da Inteligência para dirigir a Vida, sofrendo na tentativa igual derrota, embora de outra maneira. A dificuldade está na maneira de representar essa Vida que a Inteligência tenta dominar. O preferível é representar essa Vida por discípulo ou alguém assim, em quem, por não compreender a subtileza e o género de ambição do Mestre, as pretensas vontades e imposições deste nenhuma impressão causam, ou causam uma impressão falsa. O melhor talvez é representar a Vida aqui por três discípulos ou outras pessoas — um sobre quem a acção intelectual é nula, outro por quem é aceite erroneamente, pervertidamente, e um terceiro por quem é de instinto combatida, com uso também da Inteligência, que nele é arma, meio, instrumento para o instinto se manifestar.

O 2º entreacto resume a lição que o drama do 2º acto põe humanamente. Este entreacto é lírico como o primeiro. (Estudar o género lírico, da direcção essencial deste entreacto).

O 3º Acto envolve a luta da Inteligência para se adaptar à Vida, que, neste ponto, é, como é de esperar, representada pelo Amor, isto é, por uma figura feminina, Maria, a quem Fausto tenta saber amar.

        Que fazes tu?

                FAUSTO:

        Tento saber amar.

        Nasceu morto o que quis de mim.

A derrota da Inteligência é igualmente flagrante neste caso. O acto fecha com o monólogo da noite, de especial amargura, porque a incapacidade de adaptação à vida é mais amarga que a falência em compreendê-la e dirigi-la, que são, a 1ª mais horrível (pelo mistério essencial) a 2ª mais desilusionante (pela disparidade entre os resultados e o esforço empregado e a sua direcção intencional).

O 3º entreacto, lírico também, é difícil de determinar que orientação tenha. (Não deve ser este sem dúvida o entreacto dionisíaco) (??)

No 4º acto a tentativa que falha é a de dissolver a Vida, em que a raiva da inimizade falha ante a capacidade de reacção da Vida, caindo no Hábito (os revoltosos que reconhecem senhor o senhor contra quem se revoltaram), no Prazer Mais Próximo, e na Indiferença entre os grandes fins, ainda que tenham um apelo para o instinto (o que é representado pela cena em que os amorosos ouvem passar ao longe indiferentemente o tumultar da revolta).

O 4º entreacto deve ser o mais frio de todos.

No 5º acto temos, finalmente, a Morte, a falência final da Inteligência ante a Vida. Enquanto se dança e se brinca em uma festa de dia-santo, Fausto agoniza ignorado. E o drama fecha com a canção do Espírito da Noite, repondo o elemento do terror do Mistério, que envolve tanto a Vida como a inteligência — canção simples e fria.

Um dos principais estudos a fazer aqui é o da natureza dos entreactos. Sem dúvida que o 1º deve ser o de lirismo metafísico, que acaba com a canção «a catarata de sonho». O 2º entreacto, na passagem da falência da Inteligência para dirigir a sua falência para se adaptar, deve ser o mais suave de todos, embora um resaibo da falência que vai haver deva talvez pairar na lírica por ele espalhada. O 3º entreacto é sem dúvida o dionisíaco, porque a tendência dionisíaca da Inteligência é que a leva a dissolver a Vida, tanto pelo erro no instinto, que leva ao excesso absurdo e teorizado, como pela raiva imanente nesse excesso. O 4º entreacto, que é o que é bom que comece com a canção do Destino (??), fecha friamente a série lírica, o comentário lírico que os entreactos constituem.

É este, aproximadamente quanto aos detalhes, o ambiente dramático do Primeiro Fausto.

Outro modo de pôr o mesmo problema, ou, antes, a mesma tese:

        1º Acto: Conflito da Inteligência consigo própria.

        2º Acto: Conflito da Inteligência com as outras Inteligências.

        3º Acto: Conflito da Inteligência com a Emoção.

        4ºActo: Conflito da Inteligência com a Acção.

        5º Acto: Derrota da Inteligência.

s.d.

“Primeiro Fausto” in Poemas Dramáticos. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de Eduardo Freitas da Costa.) Lisboa: Ática, 1952 (imp.1966).

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