Heteronímia
16. Influência
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«Quando Reis fala da morte, parece que antecipa ser enterrado vivo.»
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Se as crianças não percebem os adultos - que, aliás, nada têrm que perceber porque são todos iguais, e o que é igual a outra coisa não existe -, mais certo é que os adultos não percebem as crianças. Ser adulto é esquecer-se de que se foi criança. Por isso os pais castigam os filhos por aquilo mesmo que fizeram na mesma idade. Quando um pai se lembra do que foi, e não castiga o filho, é porque procede racionalmente: acha que, se se lembrasse do que foi, não deveria castigar o filho. Na realidade não se lembra. Teria ficado criança se se lembrasse.
Isto vem a propósito do resultado horroroso que, num certo aspecto, a influência de Caeiro deu na receptiva de Ricardo Reis. A ausência de preocupação metafísica em Caeiro, natural em quem pensa infantilmente, tornou-se, na interpretação adulta de Reis, uma coisa monstruosa. Como Caeiro, Ricardo Reis encara a vida e a morte naturalmente, mas, ao contrário de Caeiro, pensando nelas. De aí esses versos de uma materialidade angustiante, até para ele mesmo que os escreve. Quando Reis fala da morte, parece que antecipa ser enterrado vivo. Considera-se nada, excepto para o efeito dispensável de sentir sobre si a «húmida terra imposta», e outras maneiras igualmente sufocantes de dizer a mesma coisa. O sentimento que em Caciro é um campo sem nada é em Reis um túmulo também sem nada. Adoptou o nada de Caeiro mas não tinha a ciência de o não deixar apodrecer.
Envelhecer e morrer parecem ser para Ricardo Reis a súmula e o sentido da vida. Para Caeiro não há envelhecer, e morrer está para lá dos montes. Isto vem a propósito de influências, creio.
Reis não tem metafísica. Adoptou a de Caeiro e o resultado foi aquele. Não nego que tenha relevo estético; nego que se possa decentemente ler. Cada um de nós deve ter uma metafísica própria, pois cada um de nós é cada um de nós. Se recebermos influências, recebamo-las para os nossos ritmos, para as nossas imagens, para a disposição dos nossos poemas. Mas não a recebamos para a nossa própria alma!
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.
- 379.«Notas para a recordação do meu mestre Caeiro»