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Heteronímia

9. Álvaro de Campos

Campos exalta a poesia das sensações que aprendeu com Caeiro.
[ilustração: Almada Negreiros (1893-1970). Álvaro de Campos. 1958. Mural Fac. Letras de Lisboa.] anterior seguinte
«É que os seus versos não me fazem pensar: fazem-me sentir.»
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O que eu adoro nos seus versos não é o sistema filosófico que me dizem que se pode tirar de lá: é o sistema filosófico que não se rode tirar de lá. É a frescura, a limpidez, a primitividade de sensações. É a falta de sistema, precisamente. É que os seus versos não me fazem pensar: fazem-me sentir; e não me fazem sentir amor, ódio, qualquer paixão ou emoção comercial — fazem-me sentir as coisas como se eu estivesse olhando para elas com um grande interesse e atenção.

Acho que está gasta a poesia amorosa, a poesia sentimental, a poesia patriótica, a poesia da natureza, a poesia de (...) — está gasta toda a poesia que é poesia de tal coisa ou de tal outra coisa. Só não está gasta a poesia das sensações, porque as sensações são individuais e as individualidades nunca se repetem. Devemos, creio, tentar dar o mais completamente possível uma expressão às nossas sensações. As nossas sensações individuais não são as de amor, as de ódio, as (...) - porque essas são demasiado semelhantes em todos os homens, e só pode haver variação na expressão delas, pelo qual processo a arte fatalmente se formaliza, se plasticiza em excesso. O que é bem nosso nas sensações, as sensações que são bem nossas, são as sensações directas, as que não têm carácter social, as que vêm directamente de ver, ouvir, cheirar, palpar, gostar, e as sensações de vidas previamente vividas, provindas do nosso passado que é só nosso, em cada um de nós só dele essas sensações provêm, por contraditórias, absurdas, desumanas que sejam.

Por isso eu digo que não há poetas do amor, nem da pátria, nem do (...), nem de outra coisa de ordem social. A poesia é individual. A poesia não é para exprimir as emoções sociais. As emoções sociais exprimem-se pela acção, cada emoção social pela acção relativa a ela. A poesia existe para exprimir aquilo que as acções e os gestos não podem exprimir.

Na sua poesia, meu querido Mestre, é a realização disto que eu aprecio, não a qualidade, que lhe atribuem, de cantar não sei que virtudes pagãs. O paganismo importa-me tão pouco como o cristianismo, como qualquer coisa que não seja eu e as minhas sensações. Basta o seu desprezo pelas actuais doutrinas, artísticas e sociais, para me encher de entusiasmo.

Dirão, é verdade, que o que é individual não deve constituir arte, porque os outros não sentirão. É um disparate. Logo que urna coisa se pode exprimir por palavras, outra pessoa, se não é estúpida ou de outra ordem da sensibilidade — e vive (...) —, pode senti-la. Aquelas emoções estranhas que não se podem exprimir... se elas se não podem exprimir como é que os outros as hão-de compreender ou deixar de compreender? Desde que uma coisa cabe em palavras, cabe na compreensão dos outros. Essa compreensão, é verdade, nunca é perfeita, porque todos somos diferentes e não sentimos as coisas do mesmo modo; mas é compreendida e isso basta.

Eu explico ainda melhor. Toda a gente sente uma sensação de alegria perante um dia extraordinariamente belo. Esta emoção é autêntica, porque não serve para fim nenhum social, nem se pode traduzir por um acto, por uma acção — podemos olhar para o dia e gozá-lo, mas é uma emoção noutro sentido. Apreciar uma mulher bela ou qualquer beleza, é já outra coisa — e por isso é positivamente desprezível — porque aí a comparação pode ter o motivo de se passar a uma expressão máxima e mais directa, repare-se bem, mais directa.

Já me disseram que há paisagens perante as quais não se podia fazer se não urrar de alegria. Urre-se, se isso é que exprime alegria. Sé é coisa que se possa dizer, diga-se.

Mas acaba-se, de uma vez para sempre, com a poesia social, amorosa, patriótica, de ódio, de amor, (...)

Quem tiver acessos de humanitarismo deve dar escolas, ou ser enfermeiro, ou outra coisa assim. O humanitarismo distribui-se por muitos, porque é de ordem social com emoção.

A vida é uma viagem que uns fazem em caixeiros-viajantes, outros em navios em lua de mel, e outros, como eu, em tourists. Eu atravesso a vida para olhar para ela. Tudo é paisagem para mim, como para o bom tourist — campos, cidades, casas, fábricas, luzes, bares, mulheres, dores, alegrias, dúvidas, guerras (...). Quero, para aproveitar a minha viagem, sentir o maior número de coisas no mais pequeno espaço de tempo possível. Sentir tudo de todas as maneiras, amar tudo de todas as formas, tocar e ver coisas e não lhes pegar, passar por elas e não olhar para trás — parece-me o único destino digno dum poeta.

1917

Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença,

1994.

 - 231.

Carta a Caeiro.

1ª versão: Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.