Heteronímia
14. Ricardo Reis
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«Estes poemas são os maiores que o século vinte tem produzido.»
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Um conceito moderno do paganismo tende, por força, a concebê-lo (?) mais no que tem de antagónico ao cristismo, do que no que tem de característico, independentemente de comparações. Se, porém, esse conceito do paganismo, por falso que fosse o método, tivesse por base uma apreciação justa das diferenças verdadeiras entre ele e o sistema cristão, pouco se haveria perdido com o método adoptado não ser o melhor. Infelizmente, os contrastadores dos dois tipos de mentalidade, por não compreenderem a primeira, buscaram-lhe um oposto falso, de onde não compreenderem a segunda.
É difícil a quem vive adentro dos sentimentos cristãos distinguir bem o que são esses sentimentos, destrinçar quais são cristãos, quais simplesmente humanos,
quais nem uma coisa nem outra, mas, por exemplo, modernos (se se tratar de um apreciador moderno) e devidos ao influxo das correntes características da nossa época.
Assim, na sua quase totalidade, os estudiosos modernos do paganismo interpretam o cristismo como uma religião triste, como se todo o cristismo fosse a vida monástica e todos os processos crististas a cela e o cilício! Contrapondo-lhe o paganismo, julgam, pois, que este é alegre e feliz. Interpretando o cristianismo como uma religião cheia do temor de Deus — e esquecendo que frequentemente é cheia do entusiasmo de Deus —, acham que o paganismo, seu contrário, é uma religião onde pouco se pensa em Deus, esquecendo que a antiguidade é mais ébria da superstição e da religião quotidiana que qualquer fase cristista. A Idade Média é pouco religiosa ao lado da absorvente preocupação do Além que distingue o paganismo. O pagão é muito mais escravo dos seus deuses que o cristão das suas divindades e dos seus santos.
Todo o historiador hoje sabe que a Idade Média foi mais alegre que a antiguidade pagã. E devia saber que o paganismo é hoje, para os mestres do seu estudo, uma época triste.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.
- 303.Prefácio a Caeiro