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Poética

16. Defeitos

Apesar de discípulo de Caeiro, Reis aponta os seus defeitos.
[ilustração: Fernando Aguiar. s/ tit. 1992.
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«Esse ritmo nasce de uma incompetência de colocar o pensamento dentro de moldes estáveis.»
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Por certo que a obra tem defeitos, e defeitos que, sendo para mim bem patentes, não empanam, salvo no pouco em que a empanam, a cintilação da obra.

Rasgou Caeiro a névoa cristã, que encobre a natureza e as emoções que nascem dela. Mas nem rasgou inteiramente essa névoa, nem de todo a conseguiu erguer de diante dos seus próprios olhos. Ambas as incompletidões eram de esperar. Que não rasgasse de todo essa névoa, era certo de antemão, pois isso não podia ser obra de um homem, senão de gerações de homens, que nem só uma bastaria. Que a não afastasse de todo de diante dos seus próprios olhos, também era de esperar; pois na alma dele, como na de todos nós, jazia, mau grado a aspiração para o objectivismo, o fermento subjectivista cristão, que, sem que por tal demos, forma parte consubstanciada da essência do nosso ser espiritual. O mais pagão de nós tem que exprimir-se em uma linguagem cristã, porque as palavras nas suas relações entre si e o sentido de cada uma isoladamente (de per si) estão cristianizados. Como não falamos já grego, também não pensamos grego. Por isso na obra de Caeiro aparecem alguns elementos que, embora não escondam a sua essência, todavia a contradizem. Enumerarei esses elementos.

Para primeiro o enumerar, escolherei aquele que é o mais evidente de todos — a forma poética adoptada, que é, para mim, inadmissível. Sei bem que essa forma tem um ritmo próprio, que nem se confunde com o ritmo dos versos livres de Whitman, nem com o dos versos livres dos franceses modernos. Esse ritmo, porém, nasce, na verdade, de uma incompetência de colocar o pensamento dentro de moldes estáveis; facilita demasiado, para que o possamos contar como valor. O objectivista deve, acima de tudo, tornar os seus poemas objectos, com contornos definidos, olhando a que obedeçam a leis exteriores a si próprios, como a pedra, quando cai, obedece à gravidade, que, sendo parte da «lógica» do seu movimento, não é parte da sua personalidade material, como tal exclusivamente considerada.

Apontarei, em seguida, como defeito — mais grave para mim, se bem que, bem o sei, muito menos grave para os outros — o banho morno de emotividade cristã em que alguns dos poemas são envolvidos, a simbologia cristista de que alguns deles, mesmo, se servem. Paira por parte do livro um romantismo naturalista qual .o que ensinaram à Europa os dulçorosos cânticos do abominável fundador da ordem franciscana. Por outros passa, como matéria estética, dispensável todavia, um sopro de mitologia cristã, que destoa da índole da obra.

Se a obra fosse, ou de um cristão, ou de um mero emotivo sem uma filosofia a soclear a sua arte, passasse esse defeito, que, aliás, mais não seria que um pecado a mais contra a natureza. Mas na obra do mais pagão, substancialmente, de todos os autores de todos os tempos, tal elemento desconsola e desconcerta, punge e desola.

Apontarei o terceiro, que é o último, defeito. Não é esse, já, da obra no seu conjunto, porém da trajectória por ela seguida. Desculpo-o, porque a doença, e, antes dela, uma daquelas perturbações emotivas que o homem forte — e tal deve o pagão ser — mesmo na juventude não deve sentir, a provocaram. Refiro-me ao caminho seguido pela inspiração de Caeiro, a partir do fim de O Guardador de Rebanhos — isto é, a contar dos dois pequenos poemas O Pastor Amoroso até ao fim. O cérebro do poeta torna-se confuso, a sua filosofia se entaramela, os seus princípios sofrem a derrota que, na indisciplina da alma, representa em espírito o que seja a vitória ignóbil de uma revolução de escravos. O leitor que tenha seguido a curva ascensional de O Guardador de Rebanhos verá, passado esse conjunto de poemas, como a inspiração se deteriora e se confunde. Não se desvia, propriamente: senão que sofre a intrusão de elementos estranhos a ela. Que o amigo desculpe o crítico, quando ele se vê forçado a afirmar que o poeta morreu a tempo. É possível que mudasse para o a que chegara. Não sei. Toda a hipótese deste género é absurda, porque o que foi era o que tinha de ser, que assim o quiseram, sob a mão invisível do Fado, os deuses senhores da matéria do nosso mundo.

São estes três defeitos que, a meu ver, empanam esta obra. São inevitáveis — um por o meio intelectual moderno, em que o autor vivia; outro pela própria espontaneidade e simpleza da obra, que buscava exprimir-se sem curar da forma, escrúpulo que ao discípulo, mais que ao mestre, compete; outra pela doença e pela perturbação do espírito. São defeitos inevitáveis, digo; não deixam por tal de ser defeitos, mas os defeitos inevitáveis são, em toda a obra, os menores. Assim esta obra, que se ergue sobranceira acima da nossa civilização abjecta, não tem senão os defeitos que lhe vêm de respirar aquele ar, acima do qual vai subindo. A outros, discípulos, compete expurgar as consequências dos defeitos que ainda empanam a causa. Mas o Mestre, que primeiro, em vinte séculos de névoa, deixou ver os contornos dos montes, e a realidade directa das pedras e das flores, não poderá ser esquecido enquanto os homens não se afastarem por completo dos caminhos do mundo e da matéria humana de que foram feitos.

1917?

Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.

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Prefácio a Caeiro