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Poética

26. Crítica literária

Pessoa aponta os erros dos críticos literários e as suas qualidades desejáveis.
[ilustração: Caricatura de Fernando Pessoa. in Semanário de Grandes Reportagens, nº12. Lisboa: 7 Fev. 1935.
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«Quanto mais profundas forem as emoções, mais alto será, também o seu grau de humanidade, de universalidade.»
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Um dos erros mais graves, porque dos mais vulgares, e tanto mais vulgar porque se apoia na vaidade, que é a mais vulgar das qualidades humanas, é o do crítico, ou o simples leitor, se erigir, espontaneamente, em crítico absoluto, em autoridade universal. Isto sucede com grande frequência em matéria artística; por vezes, até, em matéria científica.

Há quem chegue ao ponto de, sem saber nada, a valer, de medicina, emitir opiniões sobre doenças e casos clínicos. Há, mas isto é mais raro.

Um indivíduo qualquer, desconhecedor do que seja o cálculo diferencial, não diz, ao folhear um livro sobre o assunto: «isto é incompreensível«, ou, «este homem não sabe o que diz»; diz simplesmente, «não compreendo isto.» Mas o mesmo indivíduo, se for também desconhecedor de metafísica, já vulgarmente não diz, ao folhear um livro sobre esse assunto: «não compreendo isto«; a sua tendência é para dizer: «que confuso que é este homem!», ou, «isto é incompreensível». É que o ponto técnico da metafísica consiste em pensamentos e ideias, e não nas palavras empregadas, que são as correntes. E se o mesmo indivíduo folhear um livro em que essas ideias metafísicas estejam expostas em verso, redobrarão as suas acusações ao autor por aquilo que é, afinal, a ignorância dele que está lendo.

Ninguém, desconhecedor de medicina, pasma de que não compreenda determinado passo de um livro médico escrito cerradamente na terminologia da matéria. Mas qualquer indivíduo, ignorante de metafísica em geral e da de Hegel em particular, se acha apto a querer compreender, a criticar, e, se for sincero, a censurar, o verso hegeliano de Antero:

Não-ser, que és o ser único absoluto!

São assim a maioria dos leitores e dos críticos. Outros, em menor número, não levam a tal ponto a sua vaidade instintiva, a sua divinização de si mesmos. Não levam a tal ponto, mas a algum ponto a levam. Poderão reconhecer certo poema, ou certo verso, como metafísico, e, sabendo-se incompetentes na matéria, desistir de o apreciar. Mas raras vezes se sentirão incompetentes para apreciar certo tipo de emoção, mais subtil, mais intensa, ou mais complexa, do que as que em si conhecem; aí cairão no «é muito mau», no «que trapalhada», no «isto é incompreensível».

Essa presunção, assim vulgarmente tida, assenta contudo num triplo erro. O primeiro erro está em não se reparar que na literatura, visto que a sua matéria, a linguagem, é o veículo das ideias e das emoções, se reflectem, de um modo ou de outro, todos os conhecimentos humanos, e que portanto ela pôde incluir elementos derivados da história, da filosofia, das outras artes, das ciências todas. Certa imagem pôde derivar o seu fulgor de um pensamento metafísico. Certa expressão pôde derivar o seu brilho de uma alusão matemática ou médica. Certo passo pôde derivar toda a sua força de uma alusão histórica. Na proporção em que formos ignorantes da matéria onde a imagem, a frase ou o trecho foi buscar o seu fundamento, nessa mesma proporção seremos incompetentes para nos pronunciar a seu respeito. A crítica exige portanto, como primeira condição, uma cultura vasta, ainda que não profunda, para que convenientemente se compreendam os reflexos literários de fenómenos culturais estranhos à vida comum.

O segundo erro está em não se reflectir que na literatura - visto que a sua matéria, a linguagem, é o veículo de todas as emoções, sobretudo das mais profundas, das que não podem caber na acção, das que excedem a capacidade da vontade - se reflectem os temperamentos, isto é as somas das emoções mais profundas, dos que por ela se exprimem. Ora as nossas emoções mais profundas, por isso mesmo que são profundas, são as que mais nos separam do ambiente, imediato ou mediato, social ou cultural, em que vivemos. Mas a mesma circunstância de que são profundas as torna, visto que somos homens, mais próximas na essência, qualquer que deles seja a forma, das emoções comuns a todos os homens de todos os tempos. O que nos afasta dos homens aproxima-nos da humanidade. Quanto mais profundas forem as emoções mais alto será, dado o necessário poder de expressão, o mérito da obra ou das obras. E quanto mais profundas as emoções, mais alto será, também, o seu grau de humanidade, de universalidade. Por isso os maiores poetas da humanidade são também os mais humanos, e porque são os mais humanos são os mais universais.

Sucede, porém, que quanto mais nos aproximamos da universalidade, tanto mais nos afastamos da particularidade. O poeta que, no seu tempo, mais se aproxime da universalidade humana, é, por isso mesmo, o que mais se afasta do espírito desse seu tempo, a não ser que nele haja elementos acessórios que, por si, o aproximem do tempo em que vive. Shakespeare, o mais humano e universal dos poetas, não foi compreendido no seu tempo senão como o criador de figuras cómicas, como Falstaff; e o Falstaff que os isabelinos apreciavam era, não o Falstaff-comédia mas o Falstaff-farça, não a humanidade inteira que ele é por dentro mas o palhaço que era por fora (não no Hamlet que ele é por dentro, mas Yorick que ele é por fora): Shakespeare é de todos os tempos por o que nele houve de fundamental, a intuição humana; foi do seu tempo por um elemento que nele havia de acessório, a piada.

Resulta de aqui que, quanto maior o poeta, menos será compreendido no seu tempo, ou, pelo menos, na sua geração - isto, acentuo, nos elementos fundamentais que o fazem imortal, não nos superficiais que o fazem célebre. E aqui nos aparece a segunda condição da crítica - o não ser o crítico um homem do seu tempo, o haver nele o poder de, quanto possível, se despir das influências do ambiente, imediato ou mediato, de não tomar como bitolas as figuras do passado, por grandes que sejam e seguras em sua justa grandeza; de saber, de se esforçar por aprender, a distinguir o universal do particular, a humanidade eterna da humanidade contingente da sua geração. Só assim poderá distinguir a originalidade da excentricidade, a extrema originalidade da loucura. Às vezes certa semelhança temperamental entre o crítico e o criticado pode levar aquele a um recto juízo que, sem esse acidente, não seria dado. É caso de fortuna, que dificilmente se repetirá, pois a mesma originalidade dos grandes escritores, distinguindo-os entre si, também fará que essa coincidência temperamental, que acidentalmente com um autor, se torna a dar com outro. Felizmente para os críticos, os poetas ou escritores verdadeiramente grandes são em número escasso, e a distância entre a humanidade fundamental e a aparente extravagância superficial nem sempre é tão grande que seja preciso mergulhar muito, da segunda, para chegar à primeira.

Deixando, porém, esses píncaros da crítica, acheguemo-nos às simples encostas da crítica corrente. Aqui o perigo, na ordem do erro que venho citando, é o de se confundir a originalidade com a loucura ou a brincadeira, a singularidade oom o mau gosto, a novidade de expressão com a incompetência para exprimir. Às vezes convém fazer um verso frouxo, errar, até, um verso para obter determinado efeito rítmico que o ritmo regular, em que o poema esteja escrito, estorvaria ou impossibilitaria. Que nesse caso o crítico que o verso errado quer dizer o ritmo certo. Mas até isto, e o mais de que isto é exemplo, é tantas vezes, e para tantos, tão difícil!

O terceiro erro vulgar da crítica prende-se um tanto com o segundo: é, aliás, o mesmo erro de outra maneira, ou produzindo um outro efeito. As emoções profundas, se no fundo produzem a universalidade e a humanidade, produzem à superficie, isto é, ao passar para a expressão através dos conceitos, das impressões acumuladas, de tudo quanto constitui o nosso ser social e comunicável, um efeito parecido com a originalidade, mas que não é a originalidade - efeito que pôde coexistir com a originalidade, ou existir sem ela. É o que convenientemente chamaremos a singularidade. Ambas as coisas se baseiam na novidade, mas, ao passo que a originalidade é a novidade no campo mental, a singularidade é a novidade no campo emotivo. Um grande poeta pode não ser, psicologicamente, um «caso» curioso; pôde sê-lo um poeta de menor relevo. O primeiro é forçosamente mais original; o segundo evidentemente mais singular.

Ora as dificuldades que cercam a crítica no caso de distinguir entre originalidade e excentricidade acompanham-na no distinguir entre personalidade e afectação (?). Há entre estas duas a diferença que, no físico e visível, existe entre a elegância natural e a que é artificialmente produzida por incidentes de trajo e preparo; e todos sabem que por vezes - e neste campo onde os olhos, mais expertos que o cérebro, decidem - a distinção entre as duas oferece certa dificuldade. Para distinguir entre a personalidade verdadeira e a falsa, força é que o crítico consiga perceber quem o artista é, para ver se é esse quem, ou um quem postiço, que está expresso na obra. O caminho para isso é perguntar-se, ante a obra: Em quem, em que espécie de alma, é que esta expressão seria natural? Se a expressão for artificial, copiada ou de outro modo errada, o crítico sentirá isto: esta expressão não seria natural em ninguém; ou, esta expressão seria natural em X, que este copiou. [?]

Segue de aqui que o verdadeiro crítico há que reunir duas qualidades: uma cultura vasta, embora não seja profunda, para que possa compreender o que de diversos ramos da ciência, da arte ou da especulação, se encontre, de um modo ou de outro, reflectido nas obras de arte; e um grande poder de despersonalização, para que prontamente se integre em estados de espírito alheios aos que lhe sejam frequentes ou conhecidos, e assim possa sentir os sentimentos alheios, os sentimentos que não sente. D'esta segunda qualidade nascerá naturalmente a imparcialidade.

Referi-me aqui aos defeitos instintivos e naturais dos que pretendem ser críticos; não me referi aos defeitos artificiais e íacidentais, como seja a intromissão, em crítica de arte, de qualquer elemento, moral, político, filosófico ou religioso. Não há mister que me refira a tais defeitos, pois, ainda que sejam vulgares, todos os reconhecem como defeitos, e o crítico que censura o livro de um católico por ele crítico ser anti-católico, sabe perfeitamente que está sendo um mau crítico. Essa espécie de crítica vale tanto como o que procede de uma antipatia pessoal pelo artista; e é, de facto, no fundo a mesma coisa, pois é uma antipatia pessoal por um motivo impessoal.

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

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