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Obra Pública

3. Crítica

Como crítico literário, ataca ferozmente um livro para crianças de Afonso Lopes-Vieira.
[ilustração: Alfredo Margarido. Criança com balão. 1988.] anterior seguinte
«E visto que estes livros para crianças são o seu sono, bem se pode dizer que dorme como uma besta.»
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NAUFRÁGIO DE BARTOLOMEU

 

Nenhum livro para crianças deve ser escrito para crianças. Escrever de cousas simples com simplicidade é quanto se exige daquela espécie de adido à pedagogia que o Sr. Lopes Vieira quer ser. Assim, João de Deus não escreveu a «Enjeitadinha» senão com o escrúpulo de ser simples. E porque o assunto era também simples, as crianças compreendem-o. Se quisesse ser infantil, acontecia-lhe isto - seria infantil . O Sr. Lopes Vieira quer escrever para crianças mediante intuição da alma infantil, como uma criança, escrevendo para crianças. Mesmo que se saísse bem disto, não se saía bem disto. Porque as crianças não escrevem. Escrever como uma criança, é tolerável sendo criança, porque o ser criança o torna tolerável. Mas o que uma criança escreve ou não se publica ou se publica para adultos, psicólogos. E que interesse tem para crianças esta baba pedagógica? Que interesse há para adultos nesta tradução para verso do estilo do Sr. Nunes da Mata? Que interesse fica, para psicólogos desta pobreza de senso comum, obediência aos elogios de parvos ou videiros e casta abstenção das voluptuosidades de pensar e criar-arte, do S. Francisco de Assis da Livraria Ferreira?

Salvo no caso dum génio supremo, com chave para todas as portas da expressão, o querer ser simples dá com o querente na vizinhança de quem quer ser sublime. Este dá consigo em absurdo. Aquele escorrega-se para idiota. É este, ao que parece, o trágico fim cómico de quem foi o autor do «Ar Livre» e de «O Poeta Saudade». Como estes fenómenos de combustão-em-asneira encontrassem uma atmosfera de elogios propícia, a chama aumentou até vir queimar a crítica para fora da indiferença. Esse fenómeno de elogios - esse sim é que era merecedor de uma análise de química psicológica.

A fama que o Sr. Lopes Vieira tem, ex-ganhou-a dignamente, porque foi com uma obra bela, e por vezes grande que se enfameceu. Foi com moeda de lei que adquiriu o incenso com que se estonteou. Como muitos outros, e em parte pela mesma razão turibular, criou fama e deitou-se a dormir. E visto que estes livros para crianças e parte de outros, recentes, são o seu sono, bem se pode dizer que dorme como uma besta. Mas voltemos, acusadoramente, ao caso. O Sr. Lopes Vieira é um criminoso. É-o por três razões. Está estragando, com o seu gato-por-lebre de simplicidade, o rudimentar senso estético de crianças, que, mesmo que sejam só duas, são classificáveis de inúmeras, ante o horror do crime. - Está tornando ridículos assuntos que conviria tratar com uma decência que a estupidez, mesmo quando involuntária, nunca tem. Pobres cães nossos amigos tinhosos de Lopes Vieira. Pobre Bartolomeu Dias, tão embobecido de pedagogias! - E, por último, para tudo de nocivo ser, o Sr. Lopes Vieira é até antipedagógico, porque quem escreve

 

        Que era de antes o mar? Um quarto escuro

        Onde os meninos tinham medo de ir

 

merece uma inquisição de professores. Educados na estupidez pela leitura das obras infantis do Sr. Lopes Vieira, levados ao antipatriotismo pelo inevitável desdém que um livro como o «Bartolomeu Marinheiro»leva a ter pelo navegador que ali aparece vestido de bebé de Carnaval, cheios de fobias por lhes terem sido metaforizadas na infância cousas como que um quarto escuro é logicamente terrível, os homens de Portugal de amanhã (adoptados escolarmente, como tudo o que dizemos neste artigo leva a crer que sejam, os livros do Sr. Lopes Vieira) terão por Shakespeare o Sr. Júlio Dantas, por Shelley o Sr. Lopes Vieira... e serão espanhóis.

Porque em que diabo pode vir a dar uma nação de parvos, de antipatriotas e de panofóbicos senão em deixar de ser nação ?

[in Teatro: Revista de Crítica, nº 1. Lisboa, 1-3-1913]