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Obra Pública

13. Sidonismo

Admirador e apoiante, em vários escritos, de Sidónio Pais, após o seu assassinato Pessoa dedica-lhe um poema.
[ilustração: Sidónio Pais. in Lello Universal.
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«A Vida fê-lo herói e a Morte o sagrou Rei!»
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À MEMÓRIA DO PRESIDENTE-REI SIDÓNIO PAIS

Longe da fama e das espadas,

Alheio às turbas ele dorme.

Em torno há claustros ou arcadas?

Só a noite enorme.

Porque para ele, já virado

Para o lado onde está só Deus,

São mais que Sombra e que Passado

A terra e os céus.

Ali o gesto, a astúcia, a lida,

São já para ele, sem as ver,

Vácuo de acção, sombra perdida,

Sopro sem ser.

Só com sua alma e com a treva,

A alma gentil que nos amou

Inda esse amor e ardor conserva?

Tudo acabou?

No mistério onde a Morte some

Aquilo a que a alma chama a vida,

Que resta dele a nós — só o nome

E a fé perdida?

Se Deus o havia de levar,

Para que foi que no-lo trouxe

Cavaleiro leal, do olhar

Altivo e doce?

Soldado-rei que oculta sorte

Como em braços da Pátria ergueu,

E passou como o vento norte

Sob o ermo céu.

Mas a alma acesa não aceita

Essa morte absoluta, o nada

De quem foi Pátria, e fé eleita,

E ungida espada.

Se o amor crê que a Morte mente

Quando a quem quer leva de novo

Quão mais crê o Rei ainda existente

O amor de um povo!

Quem ele foi sabe-o a Sorte,

Sabe-o o Mistério e a sua lei

A Vida fê-lo herói, e a Morte

O sagrou Rei!

Não é com fé que nós não cremos

Que ele não morra inteiramente.

Ah, sobrevive! Inda o teremos

Em nossa frente.

No oculto para o nosso olhar,

No visível à nossa alma,

Inda sorri com o antigo ar

De força calma.

Ainda de longe nos anima,

Inda na alma nos conduz

Gládio de fé erguido acima

Da nossa cruz!

Nada sabemos do que oculta

O véu igual de noite e dia,

Mesmo ante a Morte a Fé exulta:

Chora e confia.

Apraz ao que em nós quer que seja

Qual Deus quis nosso querer tosco,

Crer que ele vela, benfaeja

Sombra connosco.

Não sai da nossa alma a fé

De que, alhures que o mundo e o fado,

Ele inda pensa em nós e é

O bem-amado.

Tenhamos fé porque ele foi.

Deus não quer mal a quem o deu.

Não passa como o vento o herói

Sob o ermo céu.

E amanhã, quando queira a Sorte,

Quando findar a expiação,

Ressurrecto da falsa morte!

Ele já não.

Mas a ânsia nossa que encarnara,

A alma de nós de que foi braço,

Tornara, nova forma clara,

Ao tempo e ao espaço.

Tornará feito qualquer outro,

Qualquer cousa de nós com ele;

Porque o nome do herói morto

Inda compele,

Inda comanda, e a armada ida

Para os campos da Redenção,

Às vezes leva à frente, erguida

Espada, a Ilusão.

E um raio só de ardente amor,

Que emana só do nome seu,

Dê sangue a um braço vingador,

Se esmoreceu.

Com mais armas que com Verdade

Combate a alma por quem ama.

É lenha só a Realidade.

A fé é a chama.

Mas ai, que a fé já não tem forma

Na matéria e na cor da Vida,

E, pensada, em dor se transforma

E a fé perdida!

Pra que deu Deus a confiança

A quem não ia dar o bem?

Morgado da nossa esperança,

A Morte o tem!

Mas basta o nome e basta a glória

Para ele estar connosco, e ser

Carnal presença de memória

A amanhecer;

Espectro real feito de nós,

Da nossa saudade e ânsia,

Que fala com oculta voz

Na alma, a distância;

E a nossa própria dor se torna

Uma vaga ânsia, um esperar vago,

Como a erma brisa que transtorna

Um ermo lago.

Não mente a alma ao coração.

Se Deus o deu, Deus nos amou.

Porque ele pôde ser, Deus não

Nos desprezou.

Rei-nato, a sua realeza,

Por não podê-la herdar dos seus

Avós, com mística inteireza

A herdou de Deus;

E, por directa consonância

Com a divina intervenção,

Uma hora ergueu-nos alta a ânsia

De salvação.

Toldou-o a Sorte que o trouxera

Outra vez com nocturno véu.

Deus p'ra que no-lo deu, se era

P'ra o tornar seu?

Ah, tenhamos mais fé que a esp'rança!

Mais vivo que nós somos, fita

Do Abismo onde não há mudança

A terra aflita.

E se assim é; se, desde o Assombro

Aonde a Morte as vidas leva,

Vê esta pátria, escombro a escombro,

Cair na treva;

Se algum poder do que tivera

Sua alma, que não vemos, tem,

De longe ou perto — por que espera?

Por que não vem?

Em nova forma ou novo alento,

Que alheio pulso ou alma tome,

Regresse como um pensamento,

Alma de um nome!

Regresse sem que a gente o veja,

Regresse só que a gente o sinta —

Impulso, luz, visão que reja

E a alma pressinta!

E qualquer gládio adormecido,

Servo do oculto impulso, acorde,

E um novo herói se sinta erguido

Porque o recorde!

Governa o servo e o jogral.

O que íamos a ser morreu.

Não teve aurora a matinal

Estrela do céu.

Vivemos só de recordar.

Na nossa alma entristecida

Há um som de reza a invocar

A morta vida;

E um místico vislumbre chama

O que, no plaino trespassado,

Vive ainda em nós, longínqua chama —

O DESEJADO.

Sim, só há a esp'rança, como aquela

- E quem sabe se a mesma? — quando

Se foi de Aviz a última estrela

No campo infando.

Novo Alcácer-Kibir na noite!

Novo castigo e mal do Fado!

Por que pecado novo o açoite

Assim é dado?

Só resta a fé, que a sua memória

Nos nossos corações gravou,

Que Deus não dá paga ilusória

A quem amou.

Flor alta do paul da grei,

Antemanhã da Redenção,

Nele uma hora encarnou el-rei

Dom Sebastião.

O sopro de ânsia que nos leva

A querer ser o que já fomos,

E em nós vem como em uma treva,

Em vãos assomos,

Bater à porta ao nosso gesto,

Fazer apelo ao nosso braço,

Lembrar ao sangue nosso o doesto

E o vil cansaço,

Nele um momento clareou,

A noite antiga se seguiu,

Mas que segredo é que ficou

No escuro frio?

Que memória, que luz passada

Projecta, sombra, no futuro,

Dá na alma? Que longínqua espada

Brilha no escuro?

Que nova luz virá ralar

Da noite em que jazemos vis?

Ó sombra amada, vem tornar

A ânsia feliz.

Quem quer que sejas, lá no abismo

Onde a morte a vida conduz,

Sê para nós um misticismo

A vaga luz.

Com que a noite erma inda vazia

No frio alvor da antemanhã

Sente, da esp'rança que há no dia,

Que não é vã.

E amanhã, quando houver a Hora,

Sendo Deus pago, Deus dirá

Nova palavra redentora.

Ao mal que há,

E um novo verbo ocidental

Encarnado em heroísmo e glória,

Traga por seu broquel real

Tua memória!

Precursor do que não sabemos,

Passado de um futuro a abrir

No assombro de portais extremos

Por descobrir,

Sê estrada, gládio, fé, fanal,

Pendão de glória em glória erguido!

Tornas possível Portugal

Por teres sido!

Não era extinta a antiga chama

Se tu e o amor puderam ser.

Entre clarins te a glória aclama,

Morto a vencer!

E, porque foste, confiando

Em QUEM SERÁ porque tu foste,

Ergamos a alma, e com o infando

Sorrindo arroste,

Até que Deus o laço solte

Que prende à terra a asa que somos,

E a curva novamente volte

Ao que já fomos,

E no ar de bruma que estremece

(Clarim longínquo matinal!)

O DESEJADO enfim regresse

A Portugal!

27-2-1920

Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.

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