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Obra Pública

24. O Interregno

Em 1928, Pessoa escreve um folheto em defesa da ditadura militar, que mais tarde (em 1932) renega, considerando-o “não existente”.
[ilustração: Fernando Pessoa com Costa Brochado no Martinho da Arcada.
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«Metade do País é monárquica, metade do País é republicana. São estes os factos.»
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O Interregno.

Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal

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PRIMEIRO AVISO

O Núcleo da Acção Nacional, que em várias horas necessárias tem intervindo — suavemente, como é seu modo; obscuramente, como é seu mister — na vida da Nação, pediu-nos, que todavia a ele não pertencemos, que escrevêssemos, por ser a ocasião de o fazer, um esboço ou breve formulário do que, em nosso entender, poderia ou deveria ser o Portugal futuro em as várias manifestações da sua vida colectiva. A esta incumbência agregou o Núcleo a condição, a si mesma imposta, de que aceitaria por bom o que escrevêssemos, e com tudo o que isso fosse se conformaria, tendo-o por próprio.

Nestas condições, gratas não só por tais, mas também honrosas, escrevemos o presente opúsculo, e escreveremos, se a ordem e a hora forem dadas, o livro que será composto deste opúsculo, como introdução ou primeira parte, e de quatro outras partes como complemento.

Serão, pois, cinco as partes desse livro, até se chegar ao fim do desenvolvimento da doutrina. A primeira parte, que está neste opúsculo, é introdutória. A segunda tratará da Nação Portuguesa; a terceira do Estado Português; a quarta da Sociedade. chamada Portugal. Mais tarde se compreenderá em que consiste esta distinção. O mais importante, se não se ordenar que fique por dizer, formará a quinta parte desse livro.

Este opúsculo trata exclusivamente da defesa e justificação da Ditadura Militar em Portugal e do que, em conformidade com essa defesa, chamamos as Doutrinas do Interregno. As razões, que nele se presentam, nem se aplicam às ditaduras em geral, nem são transferíveis para qualquer outra ditadura , senão na proporção em que incidentalmente o sejam. Tão-pouco se inclui nele, explícita ou implicitamente, qualquer defesa dos actos particulares da Ditadura Militar presente. Nem, se amanhã essa Ditadura Militar cair, cairão com ela estes argumentos. Não haverá senão que reconstruí-la, que estabelecer de novo o Estado de Interregno: não há outro caminho para a salvação e renascimento do País senão a ditadura militar, seja esta ou seja outra. Cumpre que isto fique desde já entendido como intuito proposto; ficá-lo-á como caso provado quando se houver lido o opúsculo.

Escrevemos estas páginas num tom, num estilo e numa forma propositadamente antipopulares, para que o opúsculo, por si mesmo, eleja quem o entenda. Tudo quanto, em matéria social, é facilmente compreensível, é falso e estúpido. Tão complexa é toda matéria social que ser simples nela é estar fora dela. É essa a principal razão por que a democracia é impossível.

O que vão ler, não todos os Portugueses que nos lerem, se não todos que nos souberem ler, é escrito sem obediência a nenhuma tradição nossa, sem subserviência a teoria nenhuma estranha., sem atenção a nenhuma corrente do chamado pensamento europeu. Pensámo-lo nós por nós e por nós o elaborámos e dispusemos. No livro, que porventura o inclua, será

este texto revisto, e talvez desenvolvido.

Escravos da mentalidade estrangeira, uns; escravos da falta de mentalidade própria, todos — nenhuns Portugueses, políticos ou não políticos, têm podido falar nacionalmente ou superiormente a este País. Fá-lo hoje, pela primeira vez desde 1578, e por nosso intermédio, o Núcleo de Acção Nacional.

Para o que vamos afirmar, e para o que depois teremos que propor, não queremos a atenção dos sub-Portugueses que constituem a maioria activa da Nação. Mas a atenção dos outros, dos que têm um cérebro que pode ainda vir a pertencer-lhes, nem a queremos nem a pedimos — exigimo-la.

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PRIMEIRA JUSTIFICAÇÃO DA DITADURA MILITAR

Metade do País é monárquica, metade do país é republicana. São estes os factos. Não falamos do País dividindo-o em Norte e Sul, ou em qualquer outra divisão de terras. Não falamos do País dividindo-o em classes cultas e incultas ou em qualquer outra divisão de homens. Falamos de Portugal na simples quantidade dos seus habitantes nacionais. Desses se pode dizer, com verdade pragmática, que metade é monárquica, metade republicana; que são sensivelmente iguais, que são iguais para todos os efeitos práticos, o número de monárquicos e o número dos republicanos. São estes os factos: o resto é fala política: fica para os maiorais que dela usam e para as rezes que crêem nela.

Da parte monárquica, uma pequena minoria é activa e forma os partidos monárquicos que se manifestam. Da parte republicana, uma minoria maior é activa e forma os partidos republicanos que se manifestam. O resto do País, seja virtualmente monárquico ou republicano, é apático e indiferente quanto à manifestação, ou até quanto à consciência das suas tendências. Como a minoria republicana é maior, mais activa e mais coesiva que a minoria monárquica, existe República, e não Monarquia, em Portugal. Não existe República por nenhuma outra razão.

Esta condição política do País tem paralelo num fenómeno que, como procede da mesma causa, que é o estado mental português, pode servir de símbolo dessa condição política. Somos o país das duas ortografias. Da gente que entre nós sabe escrever, parte escreve em ortografia latina, a outra parte na ortografia do Governo Provisório. A maioria, porém, não sabe ler nem escrever. Assim as letras são a sombra dos factos, e lemos mais na leitura do que esperávamos.

O facto essencial é este: Portugal é metade monárquico, metade republicano. Em Portugal presente, pois, o problema institucional é inteiramente irresolúvel. De direito, de qualquer espécie de direito não pode haver República, não pode haver Monarquia, em Portugal. Há República pela razão já dita, e porque tem que haver qualquer causa. Mas essa República não é, nem pode ser, República, como a Monarquia, que a precedeu, já não era, nem podia ser, Monarquia. Estando a Nação dividida contra si mesma, como pode ela ter um regime que defina a união que ela não tem? Repita-se, pois, para que se oiça:

o problema institucional é hoje irresolúvel em Portugal.

Porque razão, porém, está a Nação assim dividida contra si mesma?

A razão é fácil de ver, porque o caso é daqueles para que pode haver uma só razão. Estamos divididos porque não temos uma ideia portuguesa, um ideal nacional, um conceito missional de nós mesmos.

Tivemos — para bem ou para mal, porém com certeza não só para mal — um conceito de império, a que nos forçaram nossos Descobrimentos. Esse conceito caiu em Alcácer-Kibir. Nem, no longo e triste curso das três dinastias filipinas — a dos Filipes, a dos Braganças e a República —, houve mais que a minguada e passiva estirpe dos Sebastianistas literais que em algum modo mantivesse viva e amada a memória da alma de Portugal.

Ora todo ideal nacional, claramente concebido ou claramente sentido, forçosamente tende para certa fórmula política, para certo regime, que lhe seja adequado, e através do qual se exprima. Por exemplo: um imperialismo como o inglês, de domínio e expansão étnica, está necessariamente ligado, intrínseca e extrinsecamente, à ideia monárquica. Outros ideais nacionais, nem altos como aquele, nem sequer seus semelhantes, podem também exprimir-se na ideia monárquica. Ideais de tipo diverso, e entre si também diversos. projectam-se naturalmente, e por diversas razões, na fórmula republicana. Só a ausência de um ideal nacional, pela acção negativa da mesma causa, se exprime na divisão da nação, meiada entre um regime em que não crê e uma oposição a ele em que não confia. É esta a condição sem proveito em que emparceiramos com a França.

Mas quando um país está assim organicamente dividido, metade oposta a metade, está criado um estado de guerra civil — de guerra civil pelo menos latente. Ora num estado de guerra, civil ou outra, é a Força Armada que assume a expressão do Poder. Assume-a, ordinariamente, em subordinação a um poder político constituído, a um regime.

No nosso caso, porém, precisamente o que falta é um regime. Tem pois a Força Armada que ser ela mesma o regime; tem que assumir por si só todo o Poder.

É esta a primeira Doutrina do Interregno, a primeira justificação da Ditadura Militar.

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SEGUNDA JUSTIFICAÇÃO DA DITADURA MILITAR

Alem de não ter vida institucional legítima, não pode Portugal, também, ter vida constitucional alguma.

A palavra "constituição" pode receber dois sentidos: (1) simples forma constituída de governo, seja esse governo embora uma monarquia absoluta; (2) forma de governo em imitação do espírito da constituição inglesa. O primeiro é o sentido abstracto, o segundo o sentido histórico, da palavra. Portugal presente não pode ter constituição, no primeiro sentido da palavra, porque, como já se disse, não pode ter regime político, e a constituição, neste sentido, é somente a definição do regime. E Portugal presente não pode nem deve ter constituição, no segundo sentido da palavra, pela razão mais forte ainda, porém mais complexa, que se vai expor.

Como na Europa semibárbara — à parte certas repúblicas, mais ou menos do género, porém não da espécie, das cidades-estados dos antigos — não havia outro sistema geral de governo senão a monarquia absoluta, é claro que não podia haver despotismo ou tirania senão através desse sistema. Ora o espírito humano, como é essencialmente confuso e, por isso, simplista, não distingue habitualmente o particular do geral. Assim, mais ou menos claramente se formou a ideia de que despotismo e absolutismo eram a mesma coisa. Ainda hoje há quem confunda a significação dos dois termos. Os factos, porém, olham para outro lado. Todo o homem, Ou grupo de homens, que manda, tende, em virtude do egoísmo natural da alma humana, a abusar desse mando. Só não abusa se, ou quando sente que não pode abusar, ou que perderá mais abusando do que não abusando.

Mas há só uma coisa que faz sentir ao governante que não pode abusar: é a presença sensível, quase corpórea, de uma opinião pública directa, imediata, espontânea, coesiva, orgânica, que todos os povos sãos possuem em virtude do instinto social que os torna povos, e cuja pressão oculta os seus governantes sentem sem que essa opinião pública tenha sequer que falar, e muito menos que delegar ou eleger quem por ela obre ou fale. Por isso, disse Hume, e disse bem, que não há verdadeiro governo, ainda o mais autocrático, que se não apoie na opinião pública.

Ora, pensando, por uma parte e por erro, que a monarquia absoluta era essencialmente má, e sentindo, por outra parte e com metade de razão, que a opinião pública é a essência de toda a vida governativa, foi o espírito europeu levado inevitavelmente a buscar uma fórmula pela qual essa opinião pública se coordenasse estruturalmente, se constituísse em órgão limitador ou substituidor do poder régio. Confusamente, incoerentemente, se esboçaram, desde a mesma Idade Média, doutrinas norteadas por este fito: umas eram derivadas do exemplo, em geral treslido, das cidades-estados dos antigos, outras surgiram espontaneamente da especulação medieval, muito mais espaçosa do que se supõe nesta matéria; e a algumas delas encorajou a Igreja, a quem convinha disseminar doutrinas antimonárquicas nas universidades, para hostilizar o poder dos reis, frequentemente em conflito com o dela.

Estes fantasmas de doutrina tomaram subitamente corpo, como seria de supor, no primeiro verdadeiro embate entre a monarquia absoluta e qualquer força que incarnasse definidamente esse impulso adverso. Deu-se o caso em Inglaterra, no conflito, em grande parte nacional e especial, entre a monarquia dos Stuarts, conscientemente "de direito divino", e a oposição a ela, que assumiu episodicamente, e em contrário do sentimento da maioria, a forma republicana. Nasceu por fim, depois de pesados anos de perturbações, o chamado constitucionalismo, fórmula de equilíbrio espontâneo, provinda de antigas tradições nacionais em que o fermento de todas as doutrinas anti-monárquicas diversamente se infiltrava. O principal teorista do sistema, tal qual finalmente veio a aparecer, foi Locke, em seu Ensaio sobre o Governo Civil.

Ora o mesmo simplismo do espírito humano, que o leva a confundir o particular e o geral na teoria, o conduz a os não distinguir na prática. Assim, sem considerar se a solução política inglesa não seria particularmente inglesa, e portanto inaplicável a outros

povos, em outras circunstâncias de passado e de presente, os pensadores políticos europeus erigiram em dogma a constituição de Inglaterra. A fórmula constitucional inglesa passou a ser, para eles, uma espécie de descoberta científica, não só universalmente verdadeira, como o são os dados da ciência, mas também absolutamente perfeita, como o são as expressões das leis naturais. E, como o povo inglês rapidamente se distanciou, no gozo de verdadeira liberdade e de uma vida social superior, de todos os outros povos de Europa, viram, aparentemente, a prática a confirmar a teoria. Daí a intoxicação constitucional, que haveria de produzir, numa amplidão doutrinária exaltada, a Revolução Francesa, pela qual as doutrinas, já metafísicas, do constitucionalismo inglês se derramaram depois por todo o mundo.

A ninguém ocorreu, parece, que a liberdade, em qualquer povo, é a simples expressão da sua força espontaneamente coesiva em resistir a qualquer tirania, nem que a liberdade e a superioridade social inglesas provinham, não de uma fórmula que é uma abstracção, mas da saúde social, da forte opinião pública directa, que estavam por trás dessa fórmula e lhe davam a vida real, como a haveriam dado, no mesmo sentido, a qualquer outra.

Assim, de uma intuição central justa, embrulhada em erros e por eles sufocada, nasceu em Europa, e alastrou a todo o mundo civilizado, a superstição constitucional. Consiste ela em crer que a fórmula constitucional inglesa é universal, sendo pois aplicável a qualquer povo civilizado, em quaisquer circunstâncias; e que é perfeita, dado que seja a verdadeira fórmula de traduzir para uma norma política aquilo a que se chama opinião pública.

Ambas as teses são demonstravelmente erróneas. A primeira a todos o deve parecer, ainda que por simples intuição. É evidente, ou deveria sê-lo, que o regime que particularmente convém a um povo representa uma adaptação às particularidades desse povo, e deve ser, portanto, inadaptável em princípio às particularidades, forçosamente diferentes, de outro povo qualquer. À parte esta razão, porém, há uma outra, de mais peso. Só pode ser universalmente aplicável o que é universalmente verdadeiro, isto é, um facto científico. Ora em matéria social não há factos científicos. A única coisa certa em "ciência social", é que não há ciência social. Desconhecemos por completo o que seja una sociedade; não sabemos como as sociedades se formam, nem como se mantém nem como declinam. Não há uma única lei social até hoje descoberta; há só teorias e especulações, que, por definição, não são ciência. E onde não há ciência não há universalidade. O constitucionalismo inglês, ou outra teoria social qualquer, é portanto inaplicável à generalidade dos povos, convindo só, porventura, ao povo onde apareceu e onde, portanto, é em certo modo natural. O que resta saber porém, é se, no próprio povo inglês, o constitucionalismo inglês dá bom resultado. Se não der, as duas teses ruem juntas, pois o que é mau onde é natural — embora viável por ser natural — será duas vezes mau onde for artificial, pois aí nem viável será. Leva-nos isto, pois, ao exame da segunda crença da superstição constitucional — a de que o constitucionalismo inglês realmente representa a projecção política da opinião pública.

Essa crença, vai desmenti-la por nós, e melhor que o faríamos nós, um inglês moderno, homem culto e experimentado, político por hereditariedade e por vocação. Diz assim Lord Hugh Cecil, filho do Marquês de Salisbury, a p. 235 e seguintes do seu livro intitulado Conservantismo:

"Torna-se altamente interessante e importante inquirir onde está o centro do poder que domina, em última análise, a Casa dos Comuns e a autoridade ilimitada que, pela constituição, essa Casa exerce. É interessante e importante, porém não é muito fácil. Pode dizer-se que o poder está no Gabinete, isto é, nos quinze ou vinte homens predominantes do partido em maioria.

"Mas isso nem sempre será verdade. Pode às vezes haver discordâncias no Gabinete. Qual é a força que então determina que a decisão seja dada num sentido ou noutro? Ou, ainda aparecerá às vezes no Gabinete uma questão para decidir e trará já uma solução tão fortemente apoiada pelo partido, que o Gabinete se veja constrangido a adoptar essa solução. Onde está o poder a que até o Gabinete tem que obedecer? A melhor resposta é que a autoridade suprema num partido é em geral exercitada pelos mais activos e enérgicos dos organizadores partidários sob o comando de um ou mais dos principais chefes do partido.

Às vezes o chefe nominal do partido está entre estes homens; outras vezes não esta. Mas eles derivam a sua força, não só da sua situação pessoal, mas de que, de um modo ou de outro, influem no que se pode chamar a Guarda Pretoriana do Partido, isto é, os seus elementos mais activos e ardentes. Se isto é assim, temos graves razões de receio. A Casa dos Comuns nomeia o Executivo e tem domínio absoluto sobre a legislação. O partido em maioria na Casa dos Comuns domina absolutamente a Casa dos Comuns. Esse partido é, por sua vez, dominado pelos seus elementos mais ardentes e enérgicos, sob o comando dos políticos a quem esses são mais afectos. Quer isto dizer que a suprema autoridade do Estado está nas mãos de partidários extremos e nas mãos dos estadistas que mais admirados são por esses partidários extremos. É quase impossível conceber uma forma menos satisfatória de governo. Isto, contudo, é que é a realidade. A aparência é que a Casa dos Comuns representa o povo. Mas, de facto, o povo nem tem a voz dominante na escolha da Casa dos Comuns, nem domínio real sobre ela, uma vez escolhida. O Povo tem, na prática, só a liberdade de escolher entre os candidatos partidários que são submetidos à sua escolha. São os partidários ardentes — a Guarda Pretoriana — quem escolhe os candidatos; os eleitores têm somente que determinar se querem ser representados pelo nomeado dos Pretorianos Conservadores ou pelo nomeado dos Pretorianos Liberais, ou, em casos mais raros, podem escolher um candidato, não menos disciplinado, nomeado pelo Partido Laborista. Os independentes podem propor-se, e algumas vezes se propõem à eleição. Mas as eleições, nas condições modernas, são a tal ponto matéria de organização e mecanismo que é com grande desigualdade que um independente se pode bater contra os candidatos nomeados pelos partidos. O triunfo de uma candidatura independente é a coisa mais rara deste mundo. A única verdadeira influência que têm os independentes está no desejo dos chefes partidários de lhes obter os votos. Mas até isto tem na prática um alcance limitado. Há assuntos controversos sobre os quais os partidários ardentes, de um lado e de outro, sentem tão fortemente que quasi nada se importam da opinião do público não partidário. E, quando a Casa está eleita, a influência da opinião pública fica semelhantemente limitada.

"Alguma coisa se fará para obter apoio na próxima eleição geral; mas, sempre que os homens do partido do governo realmente se empenhem num assunto, correrão todos os riscos para fazer vingar a sua política. sobretudo o farão quando o assunto de que se trate envolva o crédito pessoal de um dos chefes da sua confiança. O facto formidável é que a mais alta autoridade do nosso Império imenso e único se encontra alternadamente nas mãos de dois grupos de homens veementes, intolerantes e desequilibrados."

Estas palavras têm já quinze anos, porém valem hoje como então; nada, salvo o aumento do Partido Laborista, existe de novo na situação que elas descrevem, e esse aumento não pesa senão em converter em "três" a palavra "dois" no fim do texto. E estas palavras são, não só do político experiente, por herança e vocação, que dissemos ser seu autor, mas de um homem que é ele mesmo político partidário. É um dos casos em que, contra a norma jurídica, a confissão do réu tem valia.

O réu, porém, não confessou tudo. Uma polémica recente e episódica, entre chefes liberais ingleses, trouxe à atenção pública um dos pontos da vida partidária em que ordinariamente se não reparava. Isto de que os fundos partidários são secretos, secretos os nomes dos indivíduos que frequentemente entram com grandes somas para os cofres dos partidos. Isto complica o assunto e a Guarda Pretoriana. Quem entra com grandes somas para um cofre partidário raras vezes o fará por teorismo. Fá-lo, em geral, com outro fito. E, visto que deu, fará por que se faça aquilo para que deu. O partido, ou a sua Guarda Pretoriana, fará, visto que recebeu, por merecer o que recebeu. Assim, nesta noite moral, se podem subtilmente esboçar e subtilmente se infiltrar na substância da vida política orientações inteiramente antinacionais; pois, como a este propósito se observou, não sabendo ninguém quem são os magnos financiadores dos partidos, ninguém tem a certeza que não estejam ligados a elementos estrangeiros, cuja política secretamente imponham. Nem se alegue que este estado de coisas nada tem com o constitucionalismo, propriamente dito. O constitucionalismo envolve e motiva a existência de partidos; estes partidos fazem uns aos outros uma guerra política; e a guerra política, como a guerra, assenta em duas bases — dinheiro e segredo.

É assim, pois, que opera o constitucionalismo inglês no país onde é natural, e, portanto, em certo modo orgânico; onde é antigo, e, portanto, ainda mais natural; onde mais tem sido aperfeiçoado, e, portanto, onde deve estar mais livre de erros. E, se assim é neste país, como o não será nos outros, onde não é natural, nem antigo, nem, por não ser antigo, poderia ter sofrido o que propriamente se chama um aperfeiçoamento?

Nos países onde, como em Inglaterra, existe um ideal nacional, e, em certo grau uma opinião pública espontânea — aquela opinião pública natural, orgânica, não eleitora, de que acima falamos — os malefícios essenciais do constitucionalismo são diminuídos. São, porém, diminuídos por elementos externos, e não internos, a ele. A pressão de um ideal nacional, se é forte e constante, faz-se sentir no próprio Parlamento, nos próprios partidos, pois estes existem adentro da nação; a pressão de uma opinião pública espontânea, se é forte, do mesmo modo que a sentiam os reis absolutos, assim a sentem também o Parlamento e os partidos, que recuam, como faziam os reis, ante os seus impulsos mais evidentes. Parece, por isto, que, se o parlamento e os partidos podem ser, como o eram os reis, sensíveis às manifestações directas da opinião pública, tanto faz que haja reis como Parlamento e partidos; parece que basta que haja ideal nacional, e que haja opinião pública verdadeira, pois estes se farão sentir ao Parlamento e aos partidos, e assim os compelirão ao recto caminho. Infelizmente a analogia é errónea. O rei absoluto podia (com grave risco próprio) contrariar o ideal da Nação. O rei absoluto podia (com certo risco próprio) contrariar a opinião do seu povo. Mas o rei absoluto não podia sofismar ou perverter esse ideal ou essa opinião, pois não tinha contacto interno com a opinião pública, que não representava e de quem não dependia, e o ideal nacional, enquanto activo, não se manifesta senão como uma parte da opinião pública. Os partidos, porém, como têm um ideal político distinto do ideal nacional (sem o que não seriam partidos), ora sobrepõem aquele a este, ora o infiltram neste, assim o pervertendo. Os partidos, ainda, como têm que ter a aparência de se basear na opinião pública, buscam "orientá-la" no sentido que desejam, e assim a pervertem; e, para sua própria segurança, buscam servir-se dela, em vez de a servir a ela, e assim a sofismam.

Em Portugal, porém, não há (como se disse) ideal nacional, nem há (como se dirá) opinião pública. Recebemos, assim, em sua plenitude os malefícios do constitucionalismo. Somos nós os perfeitos constitucionais. Os problemas nacionais suscitados pela presença do constitucionalismo, se são graves em qualquer outro país, são, pois, entre nós gravíssimos. Temos que dar-lhes uma solução qualquer, permanente ou provisória, mas certamente imediata.

Ora como, segundo se viu na transcrição acima feita, o mal do constitucionalismo está na sua essência, visto que é radicalmente nocivo até onde é natural, não há outro remédio para ele, onde nem seja natural, senão a sua simples eliminação. Mas, se o eliminamos, o que poremos em seu lugar? Por que norma governativa o substituiremos? Onde houvesse um regime, ou a possibilidade imediata de um regime, tentaríamos extrair da substância desse regime uma norma governativa, própria e especial. Mas onde, como em Portugal presente não há regime, nem possibilidade imediata de o haver, a única solução é, eliminando o constitucionalismo, o não substituir por coisa nenhuma, parecida ou diferente dele. Em outras palavras, há que criar, que estabelecer como coisa definida, o Estado de Transição.

Sendo o Estado de Transição, em matéria nacional, a condição de um país em que estão suspensas, por uma necessidade ou compulsão temporária, todas as actividades superiores da Nação como conjunto e elemento histórico, o certo é que não está suspensa a própria Nação, que tem que continuar a viver e, dentro dos limites que esse estado lhe impõe, a orientar-se o melhor que pode. Os governantes de um país, em um período destes, têm pois que limitar a sua acção ao mínimo, ao indispensável. Ora o mínimo, o indispensável social é a ordem pública, sem a qual as mais simples actividades sociais, individuais ou colectivas, nem sequer podem existir. Os governantes naturalmente indicados por um Estado de Transição são, pois, aqueles cuja função social seja particularmente a manutenção da ordem. Se uma nação fosse uma aldeia, bastaria a polícia; como é um nação, tem que ser a Força Armada inteira.

É esta a segunda Doutrina do Interregno, a segunda justificação da Ditadura Militar.

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TERCEIRA JUSTIFICAÇÃO DA DITADURA MILITAR

Além de Portugal presente não poder ter vida institucional, nem também vida constitucional, não pode ele, ainda, ter vida de opinião pública. Assim lhe falta também o que é, não só o fundamento interno de todo governo, mas, por uma fatalidade histórica, o fundamento externo de todo governo de hoje.

Há só três bases de governo — a força, a autoridade e a opinião. Qualquer forma de governo tem que participar, para ser governo, de todas elas: sem força não se pode governar, sem opinião não se pode durar, sem autoridade não se pode obter opinião. Embora, porém, qualquer governo de todas participe, uma delas haverá em que mais particularmente, em que distintivamente, se apoie.

O governo tipicamente de força existe só nas sociedades bárbaras ou semibárbaras; regressa atipicamente nos episódios ditatoriais das sociedades civilizadas. É o governo em que se exprimem aquelas civilizações em formação, em que ainda o estado de guerra é a condição normal e constante; por isso caracteriza também aqueles períodos das civilizações formadas, em que o estado de guerra, civil ou outra, ressurge. Ao governo de força sucede, na linha de passagem das coisas, o de autoridade: a autoridade é a força consolidada, translata, a força tornada abstracta, por assim dizer. A estabilização dos governos de força os converte, passado tempo, em regimes de autoridade. Mas a autoridade não dura sempre, porque nada dura sempre neste mundo. Sendo a autoridade um prestígio ilógico, tempo vem em que, degenerando ela como tudo, a inevitável crítica humana não vê nela mais do que o ilogismo, visto que o prestígio se perdeu. Assim, no decurso das civilizações, se chega a um ponto em que — à parte os recursos incaracterísticos à força — se tem que estabelecer, ou buscar estabelecer, um sistema de governo fundado na opinião, pois não resta outro fundamento para a existência de um governo.

Europa, e nós com ela, seguiu este curso fatal. A todos nos confronta um problema político: extrair da opinião um sistema de governo. Não temos outro recurso. Não podemos recorrer à força, porque a força, numa sociedade formada, não é mais que um travão, aplicável só nos perigos e nas descidas; se a quisermos sistematizar, pagaremos o preço por que são penhoradas as sociedades em que se pretende coordenar o ocasional, isto é, realizar uma contradição. Nem podemos recorrer à autoridade, porque a autoridade é incriável e indecretável, e a tradição, que é a sua essência, tem por substância a continuidade, que uma vez quebrada, se não reata mais. Temos pois que encarar, por necessidade histórica, o problema de extrair da opinião um sistema de governo. Se é este o problema, não cuidemos que é outro.

Para nos nortearmos neste fito, temos, primeiro, que ver em que consiste a opinião. É o que nunca fizeram nem os defensores nem os críticos dos sistemas que assentam nela.

Qualquer opinião é de uma de três espécies, conforme assente no instinto (ou na intuição), no hábito, ou na inteligência. Por instinto se entende aquele fenómeno psíquico, inegável, porém difícil de explicar, pelo qual, nos animais chamados inferiores, a vida se conduz certa sem mostras de "inteligência", ou, até, condições anátomo-fisiológicas, para a existência dela. Nos animais chamados superiores os instintos subsistem, mas são neles perturbados pelo hábito e pela inteligência, que a eles, instintos, são diversamente antagónicos. Nestes animais superiores, e notavelmente em o homem, aparece, ainda, uma forma superior do instinto a que chamamos intuição: dela procedem os fenómenos estranhos, porém reais, a que por comodidade se chamou supernormais — os palpites, a inspiração, o espírito profético. A intuição operando como o instinto, porque é instinto, usurpa, e muitas vezes supera, as operações da inteligência. Os fenómenos do instinto e da intuição têm preocupado, mais que quaisquer outros, a ciência psicológica moderna; assentou ela já na certeza de que o campo do que chamou subconsciente é vastamente maior que o da razão e que o homem, verdadeiramente definido, é um animal irracional. Só por orgulho ou preconceito se pode não ver que a inteligência é — como Huxley abusivamente supunha que a simples consciência era — o que chamou um epifenómeno. Isto é, a inteligência não faz mais que espelhar, esclarecendo-os para nós e, pela palavra, para outrem, os instintos obscuros, as solicitações intuitivas, do nosso temperamento.

Por hábito entende-se aquela disposição da índole que é, em sua origem, e em contrário do instinto, estranha ao indivíduo, sendo derivada de um ambiente qualquer. Os preconceitos, as crenças, as tradições — tudo quanto, não procedendo da inteligência, também não procede do instinto — se derivam do hábito. É muitas vezes difícil distinguir uma opinião vinda do instinto de uma opinião vinda do hábito, por isso que o hábito é um instinto imposto, ou artificial — uma "segunda natureza", como com razão se lhe chamou.

As manifestações destas quatro ordens de opinião diferençam-se entre si da seguinte maneira: o instinto simples é instantâneo e sintético, é individual, e tem por objecto só coisas concretas; é centrípeto, ou egoísta, pois o será forçosamente o que for ao mesmo tempo individual e concretizante. O instinto superior, ou intuição, difere do instinto simples em que pode ter por objecto o abstracto e o indefinido, e em que, na proporção em que o tiver, deixará de ser centrípeto ou egoísta. O hábito é igual ao instinto simples, salvo em não ser individual; como esse, porém, tem por objecto o concreto e o definido. A inteligência é analítica, é individual e tem por objecto o abstracto. Em toda opinião entra uma parte de cada um destes elementos, pois, na vida é tudo fluído, misturado, incerto, mau de analisar sumariamente e impossível de analisar até o fim.

Passando agora de considerar a simples opinião, para atender ao que nos interessa, que é a opinião colectiva ou "pública", desde logo vemos que ela tem que assentar ou no hábito ou na chamada intuição. No instinto simples não pode assentar, porque ele é só individual — da vida, que não da sociedade. Na inteligência não pode também fundar-se, porque a inteligência, por ser a expressão do temperamento, é, por isso mesmo, a expressão de instintos, de hábitos a de intuições, escusando nós pois de atender a ela, quando devemos atender àquilo de que é espelho.

O conceito vulgar de democracia, o que pretende basear a opinião pública na soma das opiniões individuais fornecidas pelas inteligências; o que supõe que uma sociedade numericamente mais culta (que não só mais culta em seus representantes superiores) se orienta e governa melhor que uma sociedade quantitativamente menos culta — este conceito é forçosamente erróneo. Acresce que, como não há ciência social, não pode haver cultura sociológica. Se a houvesse, como haveria, sobre os pontos mais simples e essenciais da vida social, divergência de opiniões entre homens da maior cultura? Em que é que a cultura em geral, e a cultura sociológica em particular, orientam socialmente, se o prof. A., da Universidade de X , é conservador, o prof. B., da Universidade de Y, é liberal, e o prof. C., da Universidade de Z, é comunista? De que lhes serve a cultura se entre si divergem num congresso, do mesmo modo que três operários numa taberna? Longe de, como se disse, a "democracia sem luzes " ser um "flagelo", é a democracia com luzes que o é. Quanto maior é o grau de cultura geral de uma sociedade menos ela se sabe orientar, pois a cultura necessariamente se quer servir da inteligência para fundar opiniões, e não há opinião que se funde na inteligência. Assenta ou funda-se no instinto, no hábito, na intuição, e a intromissão abusiva da inteligência, não alterando isso, apenas o perturba. A democracia moderna é a sistematização da anarquia.

Sucede ainda, quanto à inteligência, que ela, como é analítica, é desintegrante; como é abstracta, e por isso fria, é incomunicativa; e como é a expressão de um temperamento, e o temperamento é individual, separa os homens em vez de os aproximar. O hábito, ao contrário, "pega-se"; sobretudo se "pega" um hábito social. A intuição, também, transmite-se — transmite-se por uma emissão indefinível, um "fluído", como já se lhe chamou, havendo quem creia, talvez com razão, que esse fluido é não só real, mas material. É só no hábito, pois, ou na intuição, que a opinião pública se pode fundamentar. E é num e noutra que, de facto, se fundamenta. No hábito se baseia aquela opinião pública a que, com razão no termo, chamamos conservadora. A razão de se ser conservador é a mesma de se não poder deixar de fumar. Há, porém, uma diferença, que em certo modo justifica o receio do novo que constitui a essência do conservantismo. Quem deixa de fumar, e se dá mal com fazê-lo, pode tornar a fumar. Mas um hábito social, isto é, uma tradição, uma vez quebrado, nunca mais se reata, porque é na continuidade que está a substância da tradição. Além de que, não sabendo ninguém o que é a sociedade, nem quais são as leis naturais por que se rege, ninguém sabe se qualquer mudança não irá infringir essas leis. Em igual receio se fundamentam as superstições, que só os tolos não têm — no receio de infringir leis que desconhecemos, e que, como as não conhecemos, não sabemos se não operarão por vias aparentemente absurdas. A tradição é uma superstição.

É a opinião de hábito que mantém e defende as sociedades; equivale à força que, no organismo físico, resiste à desintegração. A opinião de hábito obra sempre deste modo restritivo; umas vezes é útil porque entrava a decadência , outras é nociva, porque entrava o progresso. Sem a opinião de hábito não existiriam nações; uma nação, aliás, não é senão um hábito. Mas só com a opinião de hábito não existiriam nações progressivas; nem, até, existiriam nações, pois se não teria progredido até a fundação delas. A mais antiga tradição de qualquer país é ele não existir.

Na intuição — que, em contrário do simples instinto, vê, como a inteligência, o futuro, que não só o passado — se funda aquela opinião com que se promove o progresso das sociedades, mas, se a do hábito a não equilibrar, também a desintegração delas. Toda fórmula social nova é elaborada e imposta pela intuição, se bem que a sobreposição da inteligência lhe perturbe e corrompa a expressão. Por exclusão de partes se vê que é elaborada e imposta pela intuição. O instinto nada tem com ela. O hábito opõe-se-lhe. A inteligência, por si só, nem tem ciência social em que se funde para a supor boa ou viável, nem experiência social (visto que ela é nova) em que para tal se funde. Só a intuição — a fé, se se quiser — pode crer na virtude e na viabilidade do que ainda se não experimentou. Por isso, com razão se pode dizer que toda opinião anticonservadora é um fenómeno religioso; que todo o partido anticonservador é uma agremiação mística.

Toda vida consiste no equilíbrio de duas forças, a de integração e a de desintegração — o anabolismo e o catabolismo dos fisiologistas. A só integração não é vida; a só desintegração é morte. As duas forças assim opostas vivem em perpétua luta e é essa perpétua luta que produz o que chamamos vida. A guerra, disse Heráclito, é a mãe de todas as coisas. Mas, para que a

vida subsista, é necessário que as duas forças opostas sejam de intensidade praticamente igual; que se oponha, que se combatam, porém que nenhuma delas sobreleve a outra. A vida é a única batalha em que a vitória consiste em não haver nenhuma. É isso o equilíbrio; e a vida é uma média entre a força que a não quer deixar viver e a força que a quer matar — a diagonal de um paralelogramo de forças, diferente das duas e por elas composta. Se assim é na vida individual, assim será na vida social, que é também vida. Consiste a vida social no equilíbrio de duas forças opostas, que já vimos quais eram. Têm as duas forças que existir, para que haja equilíbrio, e, embora haja equilíbrio, que ser opostas. Um país unânime numa opinião de hábito não seria país — seria gado. Um país concorde numa opinião de intuição não seria país — seria sombras. O progresso consiste numa média entre o que a opinião de hábito deseja e o que a opinião de intuição sonha. Figurou Camões, nos Lusíadas, em o Velho do Restelo a opinião de hábito, em o Gama a opinião de intuição. Mas o Império Português nem foi a ausência de império que o primeiro desejara, nem a plenitude de império que o segundo sonharia. Por isso, por mal ou por bem, o Império Português pôde ser.

O equilíbrio das forças vitais não procede, porém, só da sua igual intensidade, se não também da sua igual direcção, em que, em certo modo, essa igual intensidade se funda. As duas forças têm de comum o serem a mesma força, que é o organismo em que vivem, e que diversamente servem de manter. Todo lógico sabe que, para haver contraste entre duas ideias, tem que haver identidade no fundamento delas. Em melhores palavras — para que duas espécies entre si se oponham, têm que ser espécies do mesmo género. Pode opor-se o preto ao branco, porque ambos são cores. Não pode opor-se o preto a um triângulo, porque um é espécie do género cor e o outro é espécie do género forma. Assim, para que nas forças vitais se possa dar oposição com equilíbrio, é mister que, no fundo, pertençam ao mesmo género, o que, em matéria de forças, quer dizer que tendam para o mesmo fim. Esse fim, visto que existem no mesmo organismo, e têm, por assim dizer, uma identidade de localização, é a vida desse organismo. Se a força de integração, que é por natureza centrípeta, se localizar em certos pontos ou órgãos, sofrerá o organismo dissolução ou desvitalização, pois os pontos livres ficarão entregues a uma desintegração completa. Se a força de desintegração, que por natureza é centrífuga, exceder o seu limite orgânico, ficará o organismo ocupado pela força oposta, e do mesmo modo sofrerá a morte ou a desvitalização. Como no individual, assim no social. Se a opinião de hábito tiver, em vez de um fito nacional, um intuito menos que nacional — província, classe, família,... — envolverá em ruína a sociedade, porque a deixara livre à opinião de intuição, que estabelecera o caos em todos os outros elementos sociais. Se a opinião de intuição tiver um intuito mais que nacional — humanidade, civilização, progresso... — do mesmo modo arruinará a sociedade, pois a deixará livre à opinião de hábito, que se apoderará de todos os seus outros elementos.

No fundo, como se trata de um sistema de forças, a uma acção corresponde sempre uma igual reacção. A uma acção excessiva corresponderá pois uma reacção igualmente excessiva, e, como um pêndulo que oscile demasiadamente, o sistema acabará por parar. Temos exemplo dos dois casos nos estados paralelos porém inversos, da vida portuguesa sob os Braganças, e da vida presente da Rússia. Nesse nosso período, vivemos concentrados na tradição em nossa vida familial, provincial e religiosa; sucedeu que nos desnacionalizámos completamente na nossa administração, na nossa política e na nossa cultura. No período presente da Rússia, tendo a opinião de intuição excedido por inteiro a nação em favor de uma entidade socialmente mítica chamada "humanidade", a opinião de hábito estabeleceu uma reacção igualmente forte, recuou para trás da família, da província, da religião tradicional, e fixou-se no último elemento social, o indivíduo, que, como tal, é um animal somente. Assim, em virtude da reacção excessiva que provoca, toda doutrina social extrema produz resultados diametralmente opostos aos que pretende produzir. O tradicionalismo orgânico produz estrangeiros; o progressivismo orgânico produz animais. É na comunidade do conceito de nação que está a base para a luta profícua, porque para o íntimo equilíbrio, entre as forças sociais opostas. No caso notável do início dos nossos Descobrimentos, a opinião de hábito se opunha à novidade deles, a de intuição a promovia; porém uma e outra não pensavam fora do ideal de grandeza pátria, ou seja, no fundo, do ideal de império. Assim pôde o Império Português, quando por mal ou por bem, veio a ser, ser informado por toda a alma de Portugal.

Já acima esboçámos, em simples exemplo ocasional, qual seja a situação presente de Portugal quanto à sua opinião pública. Concentrados dos Filipes ao liberalismo, numa estreita tradição familial, provincial e religiosa; animalizados, nas classes médias, pela educação fradesca, e, nas classes baixas, bestializados pelo analfabetismo que distingue as nações católicas, onde não é mister conhecer a Bíblia para se ser cristão; desenvolvemos, nas classes superiores, onde principalmente se forma a opinião de intuição, a violenta reacção correspondente a esta acção violenta. Desnacionalizámos a nossa política, desnacionalizámos a nossa administração, desnacionalizámos a nossa cultura. A desnacionalização explodiu no constitucionalismo, dádiva que, em reacção, recebemos da Igreja Católica. Com o constitucionalismo deu-se a desnacionalização quase total das esferas superiores da Nação. Produziu-se a reacção contrária, e, do mesmo modo que na Rússia de hoje, se bem que em menor grau, a opinião de hábito recuou para além da província, para além da religião, em muitos casos para além da família. Surgiu a contra-reacção: veio a República e, com ela, o estrangeiramento completo. Tornou a haver o movimento contrário; estamos hoje sem vida provincial definida, com a religião convertida em superstição e em moda, com a família em plena dissolução. Se dermos mais um passo neste jogo de acções e reacções estaremos no comunismo e em comer raízes — aliás o término natural desse sistema humanitário.

É este o estado presente dos dois elementos componentes da opinião pública portuguesa.

Ora num país em que isto se dá, e em que todos sentem que se dá, num país onde, sobre não poder haver regime legítimo, nem constituição de qualquer espécie, não pode, ainda, haver opinião pública em que eles se fundem ou com que se regulem, nesse país todos os indivíduos, e todas as correntes de consenso, apelam instintivamente ou para a fraude ou para a força, pois, onde não pode haver lei, tem a fraude, que é a substituição da lei, ou a força, que é a abolição dela, necessariamente que imperar. Nenhum partido assume o poder com o que se lhe reconheça como direito. Toda situação governante em Portugal, depois da queda da monarquia absoluta, é substancialmente uma fraude. A fraude, pune-a a lei; porém, quando a fraude se apodera da lei, tem que puni-la a simples força, que é o fundamento da lei, porque é o fundamento do seu cumprimento. Nisto se funda o instinto que promove as nossas constantes revoluções. Têm-nos elas tornado desprezíveis perante a civilização, porque a civilização é uma besta.

Nossas revoluções são, contudo, e em certo modo, um bom sintoma. São o sintoma de que temos consciência da fraude como fraude; e o princípio da verdade no conhecimento do erro. Se, porém, rejeitando a fraude como fundamento de qualquer coisa, temos que apelar para a força para governar o país, a solução está em apelar clara e definidamente para a força, em apelar para aquela força que possa ser consentânea com a tradição e a consecução da vida social. Temos que apelar para uma força que possua um carácter social, tradicional, e que por isso não seja ocasional e desintegrante.

Há só uma força com esse carácter: é a Força Armada.

É esta a terceira Doutrina do Interregno, a terceira e última justificação da Ditadura Militar.

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SEGUNDO AVISO

Chegados a este ponto os que leram este opúsculo, parecer-lhes-á que, para justificar a Ditadura Militar, não havia mister que o fizéssemos com mais que um só dos fundamentos expostos, nem que, em todos eles, empregássemos razões com tal desenvolvimento. Há, porém, que explicar que o triplo carácter da justificação, assim como o pormenor de toda ela, têm um intuito mais largo que o de só justificar. Para o explicar e o definir, dividamos em três razões o relato do que nos propusemos.

Em primeiro lugar, vejamos claro quanto à natureza da coisa justificada. Repetiremos o que já dissemos. Este opúsculo contém uma justificação completa da Ditadura Militar em Portugal presente. Com isso justificámos a Ditadura de hoje, em seus fundamentos. Não falámos, porém, particularmente dela. Nenhuma consideração particular importava ao nosso argumento, que era geral. provámos que é hoje legítima e necessária uma Ditadura Militar em Portugal; triplamente o provámos. Se esta, que o é, é composta como convém que seja, ou se se orienta como convém que se oriente, ou se subsistirá como convém que subsista — tudo isso é estranho à nossa demonstração. Se amanhã a Ditadura Militar cair, não cairá com ela a justificação dela. O ser necessária uma coisa não implica nem que exista, nem que, existindo, subsista; implica tão-somente que é necessária.

Em segundo lugar, o fim principal deste opúsculo está, não nele, que é só introdutório, mas nas três partes seguintes do livro de que ele é a primeira. Porém, como ele é introdutório, nele se deviam esboçar não só as matérias por cuja divisão elas são três, mas, mais particularmente, as bases dessas matérias. Da segunda secção deste emergirá a segunda parte do livro, da terceira a terceira, da quarta a quarta; a quinta, já o dissemos, não será mais que a peroração. Nessa secção segunda assentámos na importância do ideal nacional; dele, da sua natureza em Portugal, e da sua preparação aqui, tratará a segunda parte do livro. Nessa secção terceira assentámos na inviabilidade do constitucionalismo inglês; do constitucionalismo viável, que devemos criar para o substituir, tratará a terceira parte do livro. Nessa secção quarta assentámos na definição da opinião pública; de como a poderemos estabelecer e radicar em Portugal tratará a quarta parte do livro. Assim, de secção a parte de livro, tudo se liga, até numericamente.

Em terceiro lugar, tendo nós neste opúsculo esboçado as matérias dessas três partes, e definido as bases delas, em nenhuma secção, contudo, definimos as mesmas matérias, o que faremos só nas partes do livro que se lhes reportem. Não dissemos na secção segunda em que consistia um ideal nacional, nem em que deveria consistir o nosso; na segunda parte do livro, que trata da Nação Portuguesa, o faremos. Não dissemos na secção terceira em que consistia a essência do constitucionalismo inglês; na terceira parte do livro, que trata do Estado Português, o definiremos para depois assentarmos na constituição própria desse Estado. Na secção quarta, se, de facto, definimos em que consiste a opinião pública, é que na quarta parte do livro não teremos que defini-la a ela, senão às condições sociais necessárias à sua existência; da Sociedade portuguesa tratará essa quarta parte. Nem dissemos na secção segunda como se extraía um regime do ideal nacional, nem a que ideais convinha este ou aquele regime; tão-pouco dissemos, na secção quarta, qual a maneira de fazer entrar numa constituição política, ou sistema de governo, a opinião pública de uma sociedade: tudo isto fará parte, não da segunda ou da quarta, mas da terceira parte do livro. Como é ela que trata do Estado, nela se projectam as conclusões políticas corolárias da segunda, que trata da Nação, e da quarta, que trata da sociedade; pois no Estado, que é a inteligência do pais, se projectam os seus instintos, que formam a Sociedade, e os seus hábitos, que constituem a Nação.

São estes os fins, imediatos e mediatos, do presente opúsculo, que neste ponto concluímos. O que nele escrevemos (de menor monta, contudo, que o que escreveremos no próprio livro) o distingue, na amplitude e precisão dos conceitos, na lógica do desenvolvimento, e na concatenação dos propósitos, de qualquer escrito político até hoje conhecido. Nem há hoje quem, no nosso país, ou em outro, tenha alma e mente, ainda que combinando-se, para compor um opúsculo como este. Disto nos orgulhamos.

É este o Primeiro Sinal, vindo, como foi prometido, na Hora que se prometera.

O Interregno. Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal. — Lisboa, 1928

2-1928

Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.

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1ª publ.: O Interregno. Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal . Fernando Pessoa. Lisboa, Núcleo de Acção Nacional, 1928