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Obra Pública

17. Polémica

Álvaro de Campos intervem na polémica sobre «Canções», discordando de Fernando Pessoa.
[ilustração: Vasco. Caricatura de Álvaro de Campos. in Público 16-10-1990
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«Continua o Fernando Pessoa com aquela mania de julgar que as coisas se provam.»
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Meu querido José Pacheco:

Venho escrever-lhe para o felicitar pela sua «Contemporânea» para lhe dizer que não tenho escrito nada e para por alguns embargos ao artigo do Fernando Pessoa.

Quereria mandar-lhe também colaboração. Mas, como lhe disse, não escrevo. Fui em tempos poeta decadente; hoje creio que estou decadente, e já o não sou.

Isto de mim, que é quem mais próximo está de mim, apesar de tudo. De si e de sua revista, tenho saudades do nosso «Orpheu» ! V . continua sub-repticiamente, e ainda bem . Estamos, afinal, todos no mesmo lugar. Parece que variamos só com a oscilação de quem se equilibra. Repito-lhe que o felicito. Julgava difícil fazer tanto bem aos olhos em Portugal com uma coisa impressa. Julgo bom que julgasse mal. Auguro à «Contemporânea» o futuro que lhe desejo.

Agora o artigo do Fernando. Com o intervalo entre a primeira palavra desta carta e a primeira palavra deste parágrafo, já quase me não lembra o que é que lhe queria dizer do artigo. Talvez pensasse em dizer exactamente o que vou escrever a seguir. Enfim, prometi, e digo o que sinto agora, e segundo os nervos deste momento.

Continua o Fernando Pessoa com aquela mania, que tantas vezes lhe censurei, de julgar que as coisas se provam. Nada se prova senão para ter a hipocrisia de não afirmar. O raciocínio é uma timidez — duas timidezes talvez, sendo a segunda a de ter vergonha de estar calado.

Ideal estético, meu querido José Pacheco, ideal estético! Onde foi essa frase buscar sentido? E o que encontrou lá quando o descobriu? Não há ideias nem estéticas senão nas ilusões que nós fazemos deles. O ideal é um mito da acção, um estimulante como o ópio ou a cocaína: serve para sermos outros, mas paga-se caro — com o nem sermos quem poderíamos ter sido.

Estética, José Pacheco? Não há beleza, como não há moral, como não há fórmulas senão para definir compostos. Na tragédia físico-química a que se chama a Vida, essas coisas são como chamas — simples sinais de combustão.

A beleza começou por ser uma explicação que a sexualidade deu a si-própria de preferências provavelmente de origem magnética. Tudo é um jogo de forças, e na obra da arte não temos que procurar «beleza» ou coisa que possa andar no gozo desse nome. Em toda a obra humana, ou não humana, procuramos só duas coisas, força e equilíbrio de força — energia e harmonia, se V. quiser.

Perante qualquer obra de qualquer arte — desde a de guardar porcos à de construir sinfonias — pergunto só: quanta força? quanta mais força? quanta violência de tendência? quanta violência reflexa de tendência, violência de tendência sobre si própria, força da força em não se desviar da sua direcção, que é um elemento da sua força?

O resto é o mito das Danaides, ou outro qualquer mito — porque todo o mito é o das Danaides, e todo o pensamento (diga-o ao Fernando) enche eternamente um tonel eternamente vazio.

Li o livro do Botto e gosto dele. Gosto dele porque a arte do Botto é o contrário da minha. Se eu gostasse só da minha arte, nem da minha arte gostava, porque vario.

E, à parte gostar, porque gosto? É sempre mau perguntar, porque pode haver resposta. Mas pergunto — porque gosto? Há força, há equilíbrio de força, nas «Canções»?

Louvo nas «Canções» a força que lhes encontro. Essa força não vejo que tenha que ver com ideais nem com estéticas. Tem que ver com imoralidade. É a imoralidade absoluta, despida de dúvidas. Assim há direcção absoluta — força portanto; e há harmonia em não admitir condições a essa imoralidade. O Botto tende com uma energia tenaz para todo o imoral; e tem a harmonia de não tender para mais coisa alguma. Acho inútil meter os gregos no caso; grego se veria o Fernando com eles se eles lhe aparecessem a pedir-lhe contas do sarilho de estéticas em que os meteu. Os gregos eram lá estetas! Os gregos existiram.

A arte do Botto é integralmente imoral. Não há célula nela que esteja decente. E isso é uma força porque é uma não hipocrisia, uma não complicação. Wilde tergiversava constantemente. Baudelaire formulou uma tese moral da imoralidade; disse que o mau era bom por ser mau, e assim lhe chamou bom. O Botto é mais forte: dá à sua imoralidade razões puramente imorais, porque não lhe dá nenhumas.

O Botto tem isto de forte e de firme: é que não dá desculpas. E eu acho, e deverei talvez sempre achar, que não dar desculpas é melhor que ter razão.

Não lhe digo mais. Se continuasse, contradizer-me-ia. Seria abominável, porque talvez fosse uma maneira (a inversa) de ser lógico. Quem sabe?

Relembro saudosamente — aqui do Norte improfícuo — os nossos tempos do «Orpheu», a antiga camaradagem, tudo em Lisboa de que eu gostava, e tudo em Lisboa de que eu não gostava — tudo com a mesma saudade.

Saudo-o em Distância Constelada. Esta carta leva-lhe a minha afeição pela sua revista; não lhe leva a minha amizade por si porque V. já há muito tempo aí a tem.

Diga ao Fernando Pessoa que não tenha razão.

Um abraço do camarada amigo

ÁLVARO DE CAMPOS

Newcastle-on-Tyne, 17 Outubro 1922.

1922

Textos de Crítica e de Intervenção . Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980.

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1ª publ. in “Contemporãnea”, nº 4. Lisboa: 1922.