Obra Pública
23. Comércio e contabilidade
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«Toda a teoria deve ser feita para poder ser posta em prática, e toda a prática deve obedecer a uma teoria.»
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PALAVRAS INICIAIS
Propriamente falando, não há em comércio, nem em contabilidade, problemas que não sejam fundamentais, pois é sabido que, tanto em uma coisa como em outra — em tudo que envolve método —, um lapso de detalhe pode acarretar consequências desastrosas. Por isso os problemas que aqui se estudarão, embora uma e outra vez pareçam, e só à primeira vista, ser de pouca importância, serão sempre dos primaciais, ou por essência ou por oportunidade, nas matérias a cujo estudo esta Revista se dedica.
Não é nosso intuito entrar demasiadamente no que se chama sociologia do comércio, nem carregar demasiado e tecnicamente de mais, a nota jurídica ou qualquer nota especial, onde quer que tenha que ser ferida. Mas se nos afastarmos da especialidade externa, também nos não prenderemos à generalidade abstrusa. Seremos, quanto possa ser, concretos dentro da abstracção natural das teorias e das doutrinas.
Toda a teoria deve ser feita para poder ser posta em prática, e toda a prática deve obedecer a uma teoria. Só os espíritos superficiais desligam a teoria da prática, não olhando a que a teoria não é senão uma teoria da prática, e a prática não é senão a prática de uma teoria. Quem não sabe nada de um assunto, e consegue alguma coisa nele por sorte ou acaso, chama “teórico” a quem sabe mais e, por igual acaso, consegue menos. Quem sabe, mas não sabe aplicar — isto é, quem afinal não sabe, porque não saber aplicar é uma maneira de não saber —, tem rancor a quem aplica por instinto, isto é, sem saber que realmente sabe. Mas, em ambos os casos, para o homem são de espírito e equilibrado de inteligência, há uma separação abusiva.
Na vida superior a teoria e a prática completam-se. Foram feitas uma para a outra.
A índole desta Revista, tanto em matéria de comércio como em matéria de contabilidade, é provar que a teoria e a prática foram feitas uma para a outra.
Cada problema que tratarmos faremos por tratá-lo sempre aprofundadamente, e em toda a sua extensão. Tratar um problema é isto. Mas, assim como variaremos o estudo dos problemas, não teremos só um estilo para descrever as soluções que lhes encontrarmos. Se em certo artigo formos solenes, em outro sê-lo-emos menos. Isso não importa. A maneira de tratar os assuntos é como o tom de voz em que se fala: tanto se pode dizer a verdade em voz baixa como em voz alta. Os Americanos, que são quem mais estuda os problemas técnicos, expõem-nos, muitas vezes, humoristicamente. Levam, até, esse género de exposição, em alguns casos, a pontos quase inconcebíveis para nós, Europeus, tantas vezes solenemente incompetentes.
Isto é dito em previsão de que se estranhe que não ponhamos na exposição de todas as matérias o ar grave de quem tem uma missão transcendente a cumprir. Não forçaremos, porém essa nota, como não forçaremos nenhuma outra. O nosso intuito é expor de modo que nos possam ler comerciantes feitos e comerciantes por fazer, contabilistas que o são e contabilistas que o não são. Uma ou outra afirmação será escusada para um comerciante ou para um contabilista: é que é para o estudante de comércio ou de contabilidade. Outras irão um pouco além do interesse a supor no principiante destas matérias: é que são para os que já não são principiantes nelas. Assim, doseando, procuraremos expor num estilo e numa maneira que correspondam à medida dos públicos vários a quem nos dirigimos. A esses públicos pertence o decidir, apoiando-nos ou não, se atingimos ou errámos o alvo que nos propusemos.
Páginas de Pensamento Político. Vol II. Fernando Pessoa. (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Europa-América, 1986.
- 131.1ª Publ. in Revista de Comércio e Contabilidade, nº 4. Lisboa: 25-4-1926.