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Obra Pública

6. Orpheu 1

Publica o drama «O Marinheiro», no mesmo número em que surgem a «Ode Triunfal» e o «Opiário» de Álvaro de Campos.
[ilustração: «Orpheu 1». Capa de José Pacheco. Lisboa: 1915.
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«Falar do passado - isso deve ser belo, porque é inútil e faz tanta pena...»
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O MARINHEIRO

DRAMA ESTÁTICO EM UM QUADRO

                        A Carlos Franco

Um quarto que é sem dúvida num castelo antigo. Do quarto vê-se que é circular. Ao centro ergue-se, sobre uma essa, um caixão com uma donzela, de branco. Quatro tochas aos cantos. À direita, quase em frente a quem imagina o quarto, há uma única janela, alta e estreita, dando para onde só se vê, entre dois montes longínquos, um pequeno espaço de mar.

Do lado da janela velam três donzelas. A primeira está sentada em frente à janela, de costas contra a tocha de cima da direita. As outras duas estão sentadas uma de cada lado da janela.

É noite e há como que um resto vago de luar.

PRIMEIRA VELADORA — Ainda não deu hora nenhuma.

SEGUNDA — Não se pode ouvir. Não há relógio aqui perto. Dentro em pouco deve ser dia.

TERCEIRA — Não: o horizonte é negro.

PRIMEIRA — Não desejais, minha irmã, que nos entretenhamos contando o que fomos? É belo e é sempre falso. ..

SEGUNDA — Não, não falemos nisso. De resto, fomos nós alguma cousa?

PRIMEIRA — Talvez. Eu não sei. Mas, ainda assim, sempre é belo falar do passado... As horas têm caído e nós temos guardado silêncio. Por mim, tenho estado a olhar para a chama daquela vela. Às vezes treme, outras torna-se mais amarela, outras vezes empalidece. Eu não sei por que é que isso se dá. Mas sabemos nós, minhas irmãs, por que se dá qualquer cousa?...

(uma pausa)

A MESMA — Falar do passado — isso deve ser belo, porque é inútil e faz tanta pena...

SEGUNDA — Falemos, se quiserdes, de um passado que não tivéssemos tido.

TERCEIRA — Não. Talvez o tivéssemos tido…

PRIMEIRA — Não dizeis senão palavras. E tão triste falar! É um modo tão falso de nos esquecermos! ... Se passeássemos?...

TERCEIRA — Onde?

PRIMEIRA — Aqui, de um lado para o outro. As vezes isso vai buscar sonhos.

TERCEIRA — De quê?

PRIMEIRA — Não sei . Porque o havia eu de saber?

(uma pausa)

SEGUNDA — Todo este país é muito triste... Aquele onde eu vivi outrora era menos triste. Ao entardecer eu fiava, sentada à minha janela. A janela dava para o mar e às vezes havia uma ilha ao longe... Muitas vezes eu não fiava; olhava para o mar e esquecia-me de viver. Não sei se era feliz. Já não tornarei a ser aquilo que talvez eu nunca fosse...

PRIMEIRA — Fora de aqui, nunca vi o mar. Ali, daquela janela, que é a única de onde o mar se vê, vê-se tão pouco!... O mar de outras terras é belo?

SEGUNDA — Só o mar das outras terras é que é belo. Aquele que nós vemos dá-nos sempre saudades daquele que não veremos nunca...

(uma pausa)

PRIMEIRA — Não dizíamos nós que íamos contar o nosso passado?

SEGUNDA — Não, não dizíamos.

TERCEIRA — Por que não haverá relógio neste quarto?

SEGUNDA — Não sei... Mas assim, sem o relógio, tudo é mais afastado e misterioso. A noite pertence mais a si própria... Quem sabe se nós poderíamos falar assim se soubéssemos a hora que é?

PRIMEIRA — Minha irmã, em mim tudo é triste. Passo Dezembros na alma... Estou procurando não olhar para a janela.. Sei que de lá se vêem, ao longe, montes... Eu fui feliz para além de montes, outrora... Eu era pequenina. Colhia flores todo o dia e antes de adormecer pedia que não mas tirassem... Não sei o que isto tem de irreparável que me dá vontade de chorar... Foi longe daqui que isto pôde ser... Quando virá o dia?...

TERCEIRA — Que importa? Ele vem sempre da mesma maneira... sempre, sempre, sempre...

(uma pausa)

SEGUNDA — Contemos contos umas às outras... Eu não sei contos nenhuns, mas isso não faz mal... Só viver é que faz mal... Não rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes... Não, não vos levanteis. Isso seria um gesto, e cada gesto interrompe um sonho... Neste momento eu não tinha sonho nenhum, mas é-me suave pensar que o podia estar tendo... Mas o passado — por que não falamos nós dele?

PRIMEIRA — Decidimos não o fazer... Breve raiará o dia e arrepender-nos-emos... Com a luz os sonhos adormecem... O passado não é senão um sonho... De resto, nem sei o que não é sonho.

Se olho para o presente com muita atenção, parece-me que ele já passou... O que é qualquer cousa? Como é que ela passa? Como é por dentro o modo como ela passa?... Ah, falemos, minhas irmãs falemos alto, falemos todas juntas... O silêncio começa a tomar corpo, começa a ser cousa... Sinto-o envolver-me como uma névoa... Ah, falai, falai!...

SEGUNDA — Para quê?... Fito-vos a ambas e não vos vejo logo... Parece-me que entre nós se aumentaram abismos... Tenho que cansar a ideia de que vos posso ver para poder chegar a ver-vos... Este ar quente é frio por dentro, naquela parte que toca na alma... Eu devia agora sentir mãos impossíveis passarem-me pelo cabelos — é o gesto com que falam das sereias... (Cruza as mãos sobre os joelhos. Pausa). Ainda há pouco, quando eu não pensava em nada, estava pensando no meu passado.

PRIMEIRA — Eu também devia ter estado a pensar no meu...

TERCEIRA — Eu já não sabia em que pensava... No passado dos outros talvez..., no passado de gente maravilhosa que nunca existiu... Ao pé da casa de minha mãe corria um riacho... Por que é que correria, e por que é que não correria mais longe, ou mais perto?... Há alguma razão para qualquer cousa ser o que é? Há para isso qualquer razão verdadeira e real como as minhas mãos?...

SEGUNDA — As mãos não são verdadeiras nem reais... São mistérios que habitam na nossa vida... às vezes, quando fito as minhas mãos, tenho medo de Deus... Não há vento que mova as chamas das velas, e olhai, elas movem-se... Para onde se inclinam elas?... Que pena se alguém pudesse responder!... Sinto-me desejosa de ouvir músicas bárbaras que devem agora estar tocando em palácios de outros continentes... É sempre longe na minha alma... Talvez porque, quando criança, corri atrás das ondas à beira-mar. Levei a vida pela mão entre rochedos, maré-baixa, quando o mar parece ter cruzado as mãos sobre o peito e ter adormecido como uma estátua de anjo para que nunca mais ninguém olhasse...

TERCEIRA — As vossas frases lembram-me a minha alma...

SEGUNDA — É talvez por não serem verdadeiras... Mal sei que as digo... Repito-as seguindo uma voz que não ouço que mas está segredando... Mas eu devo ter vivido realmente à beira-mar... Sempre que uma cousa ondeia, eu amo-a... Há ondas na minha alma... Quando ando embalo-me... Agora eu gostaria de andar... Não o faço porque não vale nunca a pena fazer nada, sobretudo o que se quer fazer... Dos montes é que eu tenho medo... É impossível que eles sejam tão parados e grandes... Devem ter um segredo de pedra que se recusam a saber que têm... Se desta janela, debruçando-me, eu pudesse deixar de ver montes, debruçar-se-ia um momento da minha alma alguém em quem eu me sentisse feliz...

PRIMEIRA — Por mim, amo os montes... Do lado de cá de todos os montes é que a vida é sempre feia... Do lado de lá, onde mora minha mãe, costumávamos sentarmo-nos à sombra dos tamarindos e falar de ir ver outras terras... Tudo ali era longo e feliz como o canto de duas aves, uma de cada lado do caminho... A floresta não tinha outras clareiras senão os nossos pensamentos... E os nossos sonhos eram de que as árvores projectassem no chão outra calma que não as suas sombras... Foi decerto assim que ali vivemos, eu e não sei se mais alguém... Dizei-me que isto foi verdade para que eu não tenha de chorar...

SEGUNDA — Eu vivi entre rochedos e espreitava o mar... A orla da minha saia era fresca e salgada batendo nas minhas pernas nuas... Eu era pequena e bárbara... Hoje tenho medo de ter sido... O presente parece-me que durmo... Falai-me das fadas. Nunca ouvi falar delas a ninguém... O mar era grande de mais para fazer pensar nelas... Na vida aquece ser pequeno... Éreis feliz, minha irmã?

PRIMEIRA — Começo neste momento a tê-lo sido outrora... De resto, tudo aquilo se passou na sombra... As árvores viveram -no mais do que eu... Nunca chegou nem eu mal esperava... E vós irmã, por que não falais?

TERCEIRA — Tenho horror a de aqui a pouco vos ter já dito o que vos vou dizer. As minhas palavras presentes, mal eu as digo, pertencerão logo ao passado, ficarão fora de mim, não sei onde, rígidas e fatais... Falo, e penso nisto na minha garganta, e as minhas palavras parecem-me gente... Tenho um medo maior do que eu. Sinto na minha mão, não sei como, a chave de uma porta desconhecida. E toda eu sou um amuleto ou um sacrário que estivesse com consciência de si próprio. É por isto que me apavora ir, como por uma floresta escura, através do mistério de falar... E, afinal, quem sabe se eu sou assim e se é isto sem dúvida que sinto?...

PRIMEIRA — Custa tanto saber o que se sente quando reparamos em nós!... Mesmo viver sabe a custar tanto quando se dá por isso... Falai, portanto, sem reparardes que existis... Não nos íeis dizer quem éreis?

TERCEIRA — O que eu era outrora já não se lembra de quem sou... Pobre da feliz que eu fui !... Eu vivi entre as sombras dos ramos, e tudo na minha alma é folhas que estremecem. Quando ando ao sol a minha sombra é fresca. Passei a fuga dos meus dias ao lado de fontes, onde eu molhava, quando sonhava de viver, as pontas tranquilas dos meus dedos... Às vezes, à beira dos lagos, debruçava-me e fitava-me... Quando eu sorria, os meus dentes eram misteriosos na água... Tinham um sorriso só deles, independente do meu... Era sempre sem razão que eu sorria... Falai-me da morte, do fim de tudo, para que eu sinta uma razão para recordar...

PRIMEIRA — Não falemos de nada, de nada... Está mais frio, mas por que é que está mais frio? Não há razão para estar mais frio. Não é bem mais frio que está... Para que é que havemos de falar?... É melhor cantar, não sei porquê... O canto, quando a gente canta de noite, é uma pessoa alegre e sem medo que entra de repente no quarto e o aquece a consolar-nos... Eu podia cantar-vos uma canção que cantávamos em casa de meu passado. Por que é que não quereis que vo-la cante?

TERCEIRA — Não vale a pena, minha irmã... quando alguém canta, eu não posso estar comigo. Tenho que não poder recordar-me. E depois todo o meu passado torna-se outro e eu choro uma vida morta que trago comigo e que não vivi nunca. É sempre tarde de mais para cantar, assim como é sempre tarde de mais para não cantar...

(uma pausa)

PRIMEIRA — Breve será dia... Guardemos silêncio... A vida assim o quer. Ao pé da minha casa natal havia um lago. Eu ia lá e assentava-me à beira dele, sobre um tronco de árvore que caíra quase dentro de água... Sentava-me na ponta e molhava na água os pés, esticando para baixo os dedos. Depois olhava excessivamente para as pontas dos pés, mas não era para os ver. Não sei porquê, mas parece-me deste lago que ele nunca existiu... Lembrar-me dele é como não me poder lembrar de nada... Quem sabe por que é que eu digo isto e se fui eu que vivi o que recordo?...

SEGUNDA — À beira-mar somos tristes quando sonhamos... Não podemos ser o que queremos ser, porque o que queremos ser queremo-lo sempre ter sido no passado... Quando a onda se espalha e a espuma chia, parece que há mil vozes mínimas a falar. A espuma só parece ser fresca a quem a julga uma... Tudo é muito e nós não sabemos nada... Quereis que vos conte o que eu sonhava à beira-mar?

PRIMEIRA — Podeis contá-lo, minha irmã; mas nada em nós tem necessidade de que no-lo conteis... Se é belo, tenho já pena de vir a tê-lo ouvido. E se não é belo, esperai..., contai-o só depois de o alterardes...

SEGUNDA — Vou dizer-vo-lo. Não é inteiramente falso, porque sem dúvida nada é inteiramente falso. Deve ter sido assim... Um dia que eu dei por mim recostada no cimo frio de um rochedo, e que eu tinha esquecido que tinha pai e mãe e que houvera em mim infância e outros dias — nesse dia vi ao longe, como uma coisa que eu só pensasse em ver, a passagem vaga de uma vela. Depois ela cessou... Quando reparei para mim, vi que já tinha esse meu sonho... Não sei onde ele teve princípio.. . E nunca tornei a ver outra vela... Nenhuma das velas dos navios que saem aqui de um porto se parece com aquela, mesmo quando é lua e os navios passam longe devagar...

PRIMEIRA — Vejo pela janela um navio ao longe. É talvez aquele que vistes...

SEGUNDA — Não, minha irmã; esse que vedes busca sem dúvida um porto qualquer... Não podia ser que aquele que eu vi buscasse qualquer porto...

PRIMEIRA — Por que é que me respondestes?... Pode ser. . Eu não vi navio nenhum pela janela... Desejava ver um e falei-vos dele para não ter pena... Contai-nos agora o que foi que sonhastes à beira-mar...

SEGUNDA — Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha longínqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas passavam por elas... Não vi se alguma vez pousavam... Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia ali... Como ele não tinha meio de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido: pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de país com outras espécies de paisagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem das janelas... Cada hora ele construía em sonho esta falsa pátria, e ele nunca deixava de sonhar, de dia à sombra curta das grandes palmeiras, que se recortava, orlada de bicos, no chão areento e quente; de noite, estendido na praia, de costas e não reparando nas estrelas.

PRIMEIRA — Não ter havido uma árvore que mosqueasse sobre as minhas mãos estendidas a sombra de um sonho como esse!...

TERCEIRA — Deixai-a falar... Não a interrompais... Ela conhece palavras que as sereias lhe ensinaram... Adormeço para a poder escutar... Dizei, minha irmã, dizei... Meu coração dói-me de não ter sido vós quando sonháveis à beira-mar...

SEGUNDA — Durante anos e anos, dia a dia, o marinheiro erguia num sonho contínuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha uma pedra de sonho nesse edifício impossível... Breve ele ia tendo um país que já tantas vezes havia percorrido. Milhares de horas lembrava-se já de ter passado ao longo de suas costas. Sabia de que cor soíam ser os crepúsculos numa baía do norte, e como era suave entrar, noite alta, e com a alma recostada no murmúrio da água que o navio abria, num grande porto do sul onde ele passara outrora, feliz talvez, das suas mocidades a suposta...

(uma pausa)

PRIMEIRA — Minha irmã, por que é que vos calais?

SEGUNDA — Não se deve falar demasiado... A vida espreita-nos sempre... Toda a hora é materna para os sonhos, mas é preciso não o saber... Quando falo de mais começo a separar-me de mim e a ouvir-me falar. Isso faz com que me compadeça de mim própria e sinta demasiadamente o coração. Tenho então uma vontade lacrimosa de o ter nos braços para o poder embalar como a um filho... Vede: o horizonte empalideceu... O dia não pode já tardar... Será preciso que eu vos fale ainda mais do meu sonho?

PRIMEIRA — Contai sempre, minha irmã, contai sempre... Não pareis de contar, nem repareis em que dias raiam... O dia nunca raia para quem encosta a cabeça no seio das horas sonhadas... Não torçais as mãos. Isso faz um ruído como o de uma serpente furtiva... Falai-nos muito mais do vosso sonho. Ele é tão verdadeiro que não tem sentido nenhum. Só pensar em ouvir-vos me toca música na alma…

SEGUNDA –– Sim, falar-vos-ei mais dele. Mesmo eu preciso de vo-lo contar. À medida que o vou contando, é a mim também que o conto... São três a escutar... (De repente, olhando para o caixão, e estremecendo ). Três não... Não sei... Não sei quantas...

TERCEIRA — Não faleis assim... Contai depressa, contai outra vez... Não faleis em quantos podem ouvir... Nós nunca sabemos quantas coisas realmente vivem e vêem e escutam... Voltai ao vosso sonho... O marinheiro. O que sonhava o marinheiro?

SEGUNDA (mais baixo, numa voz muito lenta) — Ao princípio ele criou as paisagens, depois criou as cidades; criou depois as ruas e as travessas, uma a uma, cinzelando-as na matéria da sua alma — uma a uma as ruas, bairro a bairro, até às muralhas dos cais de onde ele criou depois os portos... Uma a uma as ruas, e a gente que as percorria e que olhava sobre elas das janelas... Passou a conhecer certa gente, como quem a reconhece apenas... Ia-lhes conhecendo as vidas passadas e as conversas, e tudo isto era como quem sonha apenas paisagens e as vai vendo... Depois viajava, recordando, através do país que criara... E assim foi construindo o seu passado... Breve tinha uma outra vida anterior... Tinha já, nessa nova pátria, um lugar onde nascera, os lugares onde passara a juventude, os portos onde embarcara... Ia tendo tido os companheiros da infância e depois os amigos e inimigos da sua idade viril... Tudo era diferente de como ele o tivera — nem o país, nem a gente, nem o seu passado próprio se pareciam com o que haviam sido... Exigis que eu continue?... Causa-me tanta pena falar disto!... Agora, porque vos falo disto, aprazia-me mais estar-vos falando de outros sonhos...

TERCEIRA — Continuai, ainda que não saibais porquê... Quanto mais vos ouço, mais me não pertenço...

PRIMEIRA — Será bom realmente que continueis? Deve qualquer história ter fim? Em todo o caso falai... Importa tão pouco o que dizemos ou não dizemos... Velamos as horas que passam... O nosso mister é inútil como a Vida...

SEGUNDA — Um dia, que chovera muito, e o horizonte estava mais incerto, o marinheiro cansou-se de sonhar... Quis então recordar a sua pátria verdadeira..., mas viu que não se lembrava de nada, que ela não existia para ele... Meninice de que se lembrasse, era a na sua pátria de sonho; adolescência que recordasse, era aquela que se criara... Toda a sua vida tinha sido a sua vida que sonhara... E ele viu que não podia ser que outra vida tivesse existido... Se ele nem de uma rua, nem de uma figura, nem de um gesto materno se lembrava... E da vida que lhe parecia ter sonhado, tudo era real e tinha sido... Nem sequer podia sonhar outro passado, conceber que tivesse tido outro, como todos, um momento, podem crer... Ó minhas irmãs, minhas irmãs... Há qualquer coisa, que não sei o que é, que vos não disse... Qualquer coisa que explicaria isto tudo... A minha alma esfria-me... Mal sei se tenho estado a falar... Falai-me, gritai-me, para que eu acorde, para que eu saiba que estou aqui ante vós e que há coisas que são apenas sonhos...

PRIMEIRA (numa voz muito baixa) — Não sei que vos diga... Não ouso olhar para as cousas... Esse sonho como continua?...

SEGUNDA — Não sei como era o resto.... Mal sei como era o resto... Por que haverá mais?...

PRIMEIRA — E o que aconteceu depois?

SEGUNDA — Depois? Depois de quê? Depois é alguma cousa?... Veio um dia um barco... Veio um dia um barco... — Sim sim... só podia ter sido assim... — Veio um dia um barco, e passou por essa ilha, e não estava lá o marinheiro

TERCEIRA — Talvez tivesse regressado à pátria... Mas a qual?

PRIMEIRA — Sim, a qual? E o que teriam feito ao marinheiro? Sabê-lo-ia alguém?

SEGUNDA — Por que é que mo perguntais? Há resposta para alguma coisa?

(uma pausa)

TERCEIRA — Será absolutamente necessário, mesmo dentro do vosso sonho, que tenha havido esse marinheiro e essa ilha?

SEGUNDA — Não, minha irmã; nada é absolutamente necessário.

PRIMEIRA — Ao menos, como acabou o sonho?

SEGUNDA — Não acabou... Não sei... Nenhum sonho acaba... Sei eu ao certo se o não continuo sonhando, se o não sonho sem o saber, se o sonhá-lo não é esta coisa vaga a que eu chamo a minha vida?.. Não me faleis mais... Principio a estar certa de qualquer coisa, que não sei o que é... Avançam para mim, por uma noite que não é esta, os passos de um horror que desconheço... Quem teria eu ido despertar com o sonho meu que vos contei?... Tenho um medo disforme de que Deus tivesse proibido o meu sonho... Ele é sem dúvida mais real do que Deus permite... Não estejais silenciosas... Dizei-me ao menos que a noite vai passando, embora eu o saiba... Vede, começa a ir ser dia.. Vede: vai haver o dia real... Paremos... Não pensemos mais... Não tentemos seguir nesta aventura interior... Quem sabe o que está no fim dela?.... Tudo isto, minhas irmãs, passou-se na noite... Não falemos mais disto, nem a nós próprios... É humano e conveniente que tomemos, cada qual, a sua atitude de tristeza.

TERCEIRA — Foi-me tão belo escutar-vos... Não digais que não... Bem sei que não valeu a pena... É por isso que o achei belo... Não foi por isso, mas deixai que eu o diga... De resto, a música da vossa voz, que escutei ainda mais que as vossas palavras, deixa-me, talvez só por ser música, descontente...

SEGUNDA — Tudo deixa descontente, minha irmã... Os homens que pensam cansam-se de tudo, porque tudo muda. Os homens que passam provam-no, porque mudam com tudo... De eterno e belo há apenas o sonho... Por que estamos nós falando ainda?...

PRIMEIRA — Não sei... (olhando para o caixão, em voz mais baixa) — Por que é que se morre?

SEGUNDA — Talvez por não se sonhar bastante...

PRIMEIRA — É possível... Não valeria então a pena fecharmo-nos no sonho e esquecer a vida, para que a morte nos esquecesse?...

SEGUNDA — Não, minha irmã, nada vale a pena...

TERCEIRA — Minhas irmãs, é já dia... Vede, a linha dos montes maravilha-se... Por que não choramos nós?... Aquela que finge estar ali era bela, e nova como nós, e sonhava também... Estou certa que o sonho dela era o mais belo de todos... Ela de que sonharia?...

PRIMEIRA — Falai mais baixo. Ela escuta-nos talvez, e já sabe para que servem os sonhos...

(uma pausa)

SEGUNDA — Talvez nada disto seja verdade... Todo este silêncio, e esta morta, e este dia que começa não são talvez senão um sonho... Olhai bem para tudo isto... Parece-vos que pertence à vida?...

PRIMEIRA — Não sei. Não sei como se é da vida... Ah, como vós estais parada! E os vossos olhos tão tristes, parece que o estão inutilmente...

SEGUNDA — Não vale a pena estar triste de outra maneira... Não desejais que nos calemos? É tão estranho estar a viver... Tudo o que acontece é inacreditável, tanto na ilha do marinheiro como neste mundo... Vede, o céu é já verde... O horizonte sorri ouro... Sinto que me ardem os olhos, de eu ter pensado em chorar...

PRIMEIRA — Chorastes, com efeito, minha irmã.

SEGUNDA — Talvez... Não importa... Que frio é isto?... Ah, é agora... é agora!... Dizei-me isto... Dizei-me uma coisa ainda... Por que não será a única coisa real nisto tudo o marinheiro, e nós e tudo isto aqui apenas um sonho dele?...

PRIMEIRA — Não faleis mais, não faleis mais... Isso é tão estranho que deve ser verdade. Não continueis... O que íeis dizer não sei o que é, mas deve ser de mais para a alma o poder ouvir… Tenho medo do que não chegastes a dizer... Vede, vede, é dia já… Vede o dia... Fazei tudo por reparardes só no dia, no dia real, ali fora... Vede-o, vede-o... Ele consola.. Não penseis, não olheis para o que pensais... Vede-o a vir, o dia... Ele brilha como ouro numa terra de prata. As leves nuvens arredondam-se à medida que se coloram.. Se nada existisse, minhas irmãs?... Se tudo fosse, qualquer modo, absolutamente coisa nenhuma?... Porque olhastes assim?...

(Não lhe respondem. E ninguém olhara de nenhuma maneira.)

A MESMA — Que foi que dissestes e que me apavorou?... Senti-o tanto que mal vi o que era... Dizei-me o que foi, para que eu, ouvindo-o segunda vez, já não tenha tanto medo como dantes... Não, não... Não digais nada... Não vos pergunto isto para que me respondais, mas para falar apenas, para me não deixar pensar... Tenho medo de me poder lembrar do que foi... Mas foi qualquer coisa de grande e pavoroso como o haver Deus... Devíamos já ter acabado de falar… Há tempo já que a nossa conversa perdeu o sentido... O que é entre nós que nos faz falar prolonga-se demasiadamente... Há mais presenças aqui do que as nossas almas.. O dia devia ter já raiado.. Deviam já ter acordado... Tarda qualquer coisa... Tarda tudo... O que é que se está dando nas coisas de acordo com o nosso horror?... Ah, não me abandoneis... Falai comigo, falai comigo... Falai ao mesmo tempo do que eu para não deixardes sozinha a minha voz... Tenho menos medo à minha voz do que à ideia da minha voz, dentro de mim, se for reparar que estou falando...

TERCEIRA — Que voz é essa com que falais?... É de outra... Vem de uma espécie de longe...

PRIMEIRA — Não sei... Não me lembreis isso... Eu devia estar falando com a voz aguda e tremida do medo... Mas já não sei como é que se fala... Entre mim e a minha voz abriu-se um abismo... Tudo isto, toda esta conversa e esta noite, e este medo — tudo isto devia ter acabado, devia ter acabado de repente, depois do horror que nos dissestes... Começo a sentir que o esqueço, a isso que dissestes, e que me fez pensar que eu devia gritar de uma maneira nova para exprimir um horror de aqueles...

TERCEIRA (para a SEGUNDA) — Minha irmã, não nos devíeis ter contado essa história. Agora estranho-me viva com mais horror. Contáveis e eu tanto me distraía que ouvia o sentido das vossas palavras e o seu som separadamente. E parecia-me que vós, e a vossa voz, e o sentido do que dizíeis eram três entes diferentes, como três criaturas que falam e andam.

SEGUNDA — São realmente três entes diferentes, com vida própria e real. Deus talvez saiba porquê... Ah, mas por que é que falamos? Quem é que nos faz continuar falando? Por que falo eu sem querer falar? Por que é que já não reparamos que é dia?...

PRIMEIRA — Quem pudesse gritar para despertarmos! Estou a ouvir-me a gritar dentro de mim, mas já não sei o caminho da minha vontade para a minha garganta. Sinto uma necessidade feroz de ter medo de que alguém possa bater àquela porta. Por que não bate alguém à porta? Seria impossível e eu tenho necessidade de ter medo disso, de saber de que é que tenho medo... Que estranha que me sinto!... Parece-me já não ter a minha voz… Parte de mim adormeceu e ficou a ver... O meu pavor cresceu mas eu já não sei senti-lo... Já não sei em que parte da alma é que se sente... Puseram ao meu sentimento do meu corpo uma mortalha de chumbo... Para que foi que nos contastes a vossa história?

SEGUNDA — Já não me lembro... Já mal me lembro que a contei... Parece ter sido já há tanto tempo!... Que sono, que sono absorve o meu modo de olhar para as coisas!... O que é que nós queremos fazer? o que é que nós temos ideia de fazer? — já não sei se é falar ou não falar...

PRIMEIRA — Não falemos mais. Por mim, cansa-me o esforço que fazeis para falar... Dói-me o intervalo que há entre o que pensais e o que dizeis... A minha consciência bóia à tona da sonolência apavorada dos meus sentidos pela minha pele... Não sei o que é isto, mas é o que sinto... Preciso de dizer frases confusas um pouco longas, que custem a dizer... Não sentis tudo isto como uma aranha enorme que nos tece de alma a alma uma teia negra que nos prende?

SEGUNDA — Não sinto nada... Sinto as minhas sensações como uma coisa que se sente... Quem é que eu estou sendo?... Quem é que está falando com a minha voz?... Ah, escutai,..

PRIMEIRA e TERCEIRA — Quem foi?

SEGUNDA — Nada. Não ouvi nada... Quis fingir que ouvia para que vós supusésseis que ouvíeis e eu pudesse crer que havia alguma coisa a ouvir... Oh, que horror, que horror íntimo nos desata a voz da alma, e as sensações dos pensamentos, e nos faz falar e sentir e pensar quando tudo em nós pede silêncio e o dia e a inconsciência da vida... Quem é a quinta pessoa neste quarto que estende o braço e nos interrompe sempre que vamos a sentir?

PRIMEIRA — Para quê tentar apavorar-me? Não cabe mais terror dentro de mim... Peso excessivamente ao colo de me sentir. Afundei-me toda no lodo morno do que suponho que sinto. Entra-me por todos os sentidos qualquer coisa que nos pega e nos vela. Pesam as pálpebras a todas as minhas sensações. Prende-se a língua a todos os meus sentimentos. Um sono fundo cola umas às outras as ideias de todos as meus gestos. Por que foi que olhastes assim?...

TERCEIRA (numa voz muito lenta e apagada) — Ah, é agora, é agora... Sim, acordou alguém... Há gente que acorda... Quando entrar alguém tudo isto acabará... Até lá façamos crer que todo este horror foi um longo sono que fomos dormindo... É dia já. Vai acabar tudo... E de tudo isto fica, minha irmã, que só vós sois

 feliz, porque acreditais no sonho…

SEGUNDA — Por que é que mo perguntais? Porque eu o disse? Não, não acredito ..

Um galo canta. A luz, como que subitamente, aumenta. As três veladoras quedam-se silenciosas e sem olharem umas para as outras.

Não muito longe, por uma estrada, um vago carro geme e chia.

1913

Poemas Dramáticos . Fernando Pessoa. (Notas explicativas e notas de Eduardo Freitas da Costa). Lisboa: Ática, 1952

 - 153.

1ª publ. in Orpheu , nº1. Lisboa: Jan-Mar. 1915