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Portugal

11. Sidónio Pais

O Dr. Quaresma, protagonistas das novelas policiais de Pessoa, tenta deduzir quem teria assassinado Sidónio Pais.
[ilustração: Sidónio Pais (1870-1918). Presidente da República em 1917.
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«Suponha-se que os bolchevicks queriam lançar suspeitas sobre alguém. Porquê sobre a Maçonaria?»
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Havia muito tempo que eu não via o Dr. Abílio Quaresma. Neste rodopio e vaivém da vida, que nos torna desleixados por pressa e amnésicos por ter vivido de mais, eu podia confessar a mim próprio — embora com vergonha o fizesse — que já Quaresma há muito me não entrava nas recordações das pessoas conhecidas. Dir-se-ia que estava há muito morto. A vida, com a sua pressa e o seu esquecimento, maltrata assim a nossa sensibilidade.

Não foi, portanto, sem um sobressalto, como ante um ressuscitado, que antes de ontem, ao virar a esquina extrema da Rua da Madalena, em baixo para a Rua da Alfândega, esbarrei com o Dr. Quaresma. Avelhantado, acentuadas já excessivamente as rugas da fronte sob o chapéu mal posto, o ar habitual de depressão e de alheamento, ele próprio envelhecido. Em vez do habitual "peralta" de 25 réis — bons tempos — em que os havia! — trazia um cigarro em mortalha barata, mal feito e mal posto na boca. Tudo nele trazia consigo a ideia de uma decadência. A idade não o justificava. Por boas contas, Quaresma não pode ter mais de quarenta anos.

Após a minha exclamação de alegria, e o vago gesto com que ele me correspondeu, soube que aquela estranha vida decorria sempre igual, sempre no mesmo quarto alugado no mesmo terceiro andar da mesma Rua dos Fanqueiros. Como dantes, mas mais apertadamente, Quaresma vivia isolado, fumando e meditando. Tinha passado já para ele a sua grande época, que, aliás, nunca foi grande, em que ele foi, no seu género, o maior raciocinador investigador que creio possível existir, embora nenhuma glória aurisse da sua tarefa de amador mestre. Já ninguém lhe ia propor aqueles problemas que outrora o haviam tornado grande para quem observava a solução desses problemas. O seu isolamento era agora absoluto. A sua índole, naturalmente triste, radicara em triste. O desleixo habitual do traje piorara, o descuido geral do gesto e da atitude tornara-se absoluto.

Estranhei que ele já de nada se ocupasse, salvo das antigas decifrações — deduzir, por uma série concatenada de raciocínios, por exemplo, em que atitude estava sentado à mesa, quando a escreveu, o autor de uma carta. Nem houve cronista que relatasse o extraordinário raciocínio pelo qual, sem ir ao local do crime, sem contacto algum com alguma das pessoas envolvidas, Quaresma decifrou integralmente o enigma do Roubo da Quinta das Vinhas, hoje, sem dúvida, já esquecido. Nem ficou relato, tão-pouco, de episódios como o de pergaminho roubado, como eu para mim lhe chamo. Um dia talvez, se tiver o tempo mental preciso para disciplinar em mim esses curiosíssimos incidentes, serei eu próprio o coordenador dessa obra de dialéctica prática, pela qual um raciocinador, sem observar (como Sherlock Holmes), vai de dedução em dedução, reconstruindo um crime inteiro, um incidente completo de que só conhece dois detalhes, um quarto de dúzia de factos.

Perguntei a Quaresma por que se interessava agora, e ele disse-me que já tinha descido ao nível de decifrador de problemas de xadrez, procurando apenas torná-los interessantes decifrando-os, não como jogador, mas como raciocinador, isto é, arrancando a solução do problema à determinação indutiva de qual o tipo psicológico do inventor do problema, tanto em absoluto, como no momento em que construiu o problema de que se tratasse. Era sempre o mesmo Quaresma, porém quantum mutatus ab ilio!

No decurso da nessa conversa lembrei-me, de repente, de lhe perguntar o que pensava do assassínio do Presidente Sidónio Pais, não considerando-o politicamente, mas pelo velho processo do raciocinador.

Quaresma sorriu.

— Pouco tenho aplicado o espírito agora aos problemas da vida real, e por isso por força que alguma coisa perdi da técnica do raciocínio aplicado à realidade. A concentração intensa sobre um assunto torna o espírito rapidamente inapto para a concentração intensa sobre outro assunto, mesmo que lhe seja, de ordinário, mais familiar e acessível. Como lhe disse, não tenho feito agora senão decifrar, por meio de raciocínio, problemas de xadrez; embora, decifrando-os assim por meio de raciocínio, não me separe tanto da realidade como se os decifrasse por aplicação ao jogo propriamente tal, em todo o caso a constante identidade do assunto de raciocínio torna inapto o espírito a uma aplicação diversa. Além disso, neste caso do assassínio do Presidente, a base de factos é insuficiente para um trabalho capaz da indução. Se me tivesse sido entregue a investigação do caso, eu não partiria a raciocinar senão depois de acumular mais um ou dois pequenos factos.

— Mas com os poucos factos que há não é possível chegar a uma conclusão, ainda que aproximada?

— Aproximada, talvez, ou, antes, provável, tendo de se notar que os factos podem ser viciados, tais quais eu os conheço: isto é, podem não ser, na verdade, "factos".

— Em todo o caso...

— Sim, se V. quiser, ser-me-á uma espécie de recordação de antigos tempos... Não esquecendo V. que estou desabituado agora desta espécie de raciocínio e que os factos são de ordem a não admitir que cheguemos a mais que a uma mera probabilidade...

— Sim, sim... Mas vamos lá...

Quaresma acendeu o cigarro, que se havia apagado . Como antigamente, fitou um pouco o vago antes de começar. Depois, no antigo tom desprendido e preciso de quem desenvolve um teorema estéril para a vida prática, começou:

— Sabe V. já  (...)

Uma vingança, um crime por ódio é tão natural que fosse planeado pelos bolchevicks, como pelos democráticos; uns, como outros, viram os seus manejos revolucionários dominados pelo Presidente. E, como qualquer grupo tenderia a fazer para se livrar de responsabilidades e represálias, é natural também que os bolchevicks tendessem a atirar com as suspeitas para cima de outro grupo qualquer. Porque escolheriam para isso a Maçonaria? Nada sei das relações que haja, ou possa haver, ou seja natural que haja, entre a M. e os Bs.; mas para o caso nada importa quais elas sejam, pois, quem tenta lançar suspeitas sobre alguém, olha ao aspecto público do acto, cujas suspeitas de Comissão quer lançar, e não a coisas secretas que o público, que é quem há-de suspeitar, desconhece.

Suponha-se que os bolchevicks queriam lançar suspeitas sobre alguém. Porquê sobre a Maçonaria? Por uma de duas razões haveria de ser, a ser: ou por ser natural que tal acto partisse da Maçonaria; ou por ser a Maçonaria motivo de aversão especial para eles, e quisessem, não só matar o Presidente, mas, ao mesmo tempo, comprometer uma associação que odiassem. Como, porém, de nada serviria querer comprometer a Maçonaria, se não tivesse aspecto de natural a atribuição a ela do crime, estas razões reduzem-se simplesmente à primeira.

Porque é que seria natural atribuir-se este crime à Maçonaria? Por razões possíveis: as suas ligações com o partido democrático, que o Pres. venceu; as suas tendências anticlericais, quando o Pres. protegeu, até certo ponto, os católicos; as suas razões de queixa directas, como fossem os assaltos ao G. Lusitano e ao Club Montanha.

Mas, se era por ser "democrática" que era natural atribuir este crime à Maçonaria, a fortiori seria natural atribuí-lo ao P. D. Ora os pseudo-factos arranjados pelos planeadores do crime envolvem directamente a Maçonaria, e não o partido democrático. Se era por ser anticlerical que seria natural atribuir o crime à Maçonaria, (...)

Que razões para atribuir o crime a Maçonaria? As suas relações com os democráticos? Era mais simples atribuir o crime aos democráticos. As suas tendências anticlericais? Essa é a razão da sua ligação com os democráticos — estamos portanto na mesma. O assalto recente a dois dos seus centros? Já isso é mais possível. Examinemos o ponto com mais cuidado.

Como é evidente a intenção dos autores verdadeiros da morte do Presidente fazer com que a Maçonaria passe por autora dele, pode conceber-se que o assalto à Maçonaria fosse planeado pelos próprios (...)

Posta de parte, portanto, a hipótese de que a morte do Presidente (...)

Provámos portanto que a morte do Presidente foi um crime político; provámos, depois, que não foi um crime político de ódio ou vingança. Ao prová-lo, demonstrámos que não era responsável desse crime, nem a Maçonaria, nem o P. Democrático, nem o bolchevikismo.

Demonstrado que o crime não foi obra de ódio, fica, por isso mesmo, provado que foi obra de cálculo. E, como foi provado que não foi obra da Maçonaria, dos democráticos, ou dos soviets, fica implicitamente provado que não foi obra de qualquer cálculo de qualquer desses grupos.

Eis-nos, portanto, na seguinte conclusão: a morte do Presidente foi um crime político, cometido por cálculo e para proveito e não para vingança e por ódio, e que não partiu nem da Maçonaria, nem dos Democráticos, nem dos Soviets. Nesse caso de quem partiu?

Ora, se é certo que, para o caso de o assassínio do Presidente ser um crime de ódio, havia só três hipóteses a considerar — a de ser causado pela Mª, a de ser causado pelos Ds., a de ser causado pelos Bs.—, porque só três eram os agrupamentos cuja acção o Presidente dominou, e cuja organização podia realizar um plano de assassínio; o facto é que, para o caso, agora provado, de se tratar de um crime de cálculo, e para proveito político, outras hipóteses, além dessas, são possíveis. Se só aqueles agrupamentos radicais tinham razões, reais ou por eles tidas como reais, para se vingar do Presidente, mais grupos havia que concebivelmente tivessem vantagem em se ver livres do Presidente.

O problema aqui toma outro caminho. Temos que investigar não qual desses grupos é (...) Os grupos que tinham razão para ódio sabemos nós quais são; não assim os que teriam interesse em matar o Presidente. No caso do ódio, toda a gente deve saber as razões ; no do interesse, podemos desconhecê-las. Temos que pôr este problema na análise directa dos factos.

s.d.

Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.

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