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Poética

21. Prosa

Bernardo Soares defende a liberdade que a prosa permite.
[ilustração: Ana Hatherly. «O escritor». 1975.] anterior seguinte
«Considero o verso como uma coisa intermédia, uma passagem da música para a prosa.»
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Prefiro a prosa ao verso, como modo de arte, por duas razões, das quais a primeira, que é minha, é que não tenho escolha, pois sou incapaz de escrever em verso. A segunda, porém, é de todos, e não é - creio bem - uma sombra ou disfarce da primeira. Vale pois a pena que eu a esfie, porque toca no sentido íntimo de toda a valia da arte.

Considero o verso como uma coisa intermédia, uma passagem da música para a prosa. Como a música, o verso é limitado por leis rítmicas, que, ainda que não sejam as leis rígidas do verso regular, existem todavia como resguardos, coacções, dispositivos automáticos de opressão e castigo. Na prosa falamos livres. Podemos incluir ritmos poéticos, e contudo estar fora deles. Um ritmo ocasional de verso não estorva a prosa; um ritmo ocasional de prosa faz tropeçar o verso.

Na prosa se engloba toda a arte - em parte porque na palavra se contém todo o mundo, em parte porque na palavra livre se contém toda a possibilidade de o dizer e pensar. Na prosa damos tudo, por transposição: a cor e a forma, que a pintura não pode dar senão directamente, em elas mesmas, sem dimensão íntima; o ritmo, que a música não pode dar senão directamente, nele mesmo, sem corpo formal, nem aquele segundo corpo que é a ideia; a estrutura, que o arquitecto tem que formar de coisas duras, dadas, externas, e nós erguemos em ritmos, em indecisões, em decursos e fluidezas; a realidade, que o escultor tem que deixar no mundo, sem aura nem transubstanciação; a poesia, enfim, em que o poeta, como o iniciado em uma ordem oculta, é servo, ainda que voluntário, de um grau e de um ritual.

Creio bem que, em um mundo civilizado perfeito, não haveria outra arte que não a prosa. Deixaríamos os poentes aos mesmos poentes, cuidando apenas, em arte, de os compreender verbalmente, assim os transmitindo em música inteligível de cor. Não faríamos escultura dos corpos, que guardariam próprios, vistos e tocados, o seu relevo móbil e o seu morno suave. Faríamos casas só para morar nelas, que é, enfim, o para que elas são. A poesia ficaria para as crianças se aproximarem da prosa futura; que a poesia é, por certo, qualquer coisa de infantil, de mnemónico, de auxiliar e inicial.

Até as artes menores, ou as que assim podemos chamar, se reflectem, múrmuras, na prosa. Há prosa que dança, que canta, que se declama a si mesma. Há ritmos verbais que são bailados, em que a ideia se desnuda sinuosamente, numa sensualidade translúcida e perfeita. E há também na prosa subtilezas convulsas em que um grande actor, o Verbo, transmuda ritmicamente em sua substância corpórea o mistério impalpável do universo.

18-10-1931
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.

1ª publ. in Descobrimentos, nº 3. Lisboa: 1931.
"Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.