Poética
15. Caeiro
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«Os meus poemas contradizem-se muitas vezes, mas que importa, se eu não me contradigo?»
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«Nunca altero o que escrevi», disse-me uma vez o meu mestre Caeiro. «Se o escrevi assim é porque o senti assim, e nada tem para o caso que eu hoje sinta de um modo diferente. Os meus poemas contradizem-se muitas vezes, bem sei, mas que importa, se eu me não contradigo? Há coisas nalguns dos meus poemas, sabe?, que eu não seria capaz de escrever agora, em ocasião nenhuma. Mas escrevi-as então, e essa é que foi a ocasião em que as escrevi. Por isso ficam como estão.»
E, a meu pedido, exemplificou:
«Olhe, por exemplo, várias coisas no poema sobre o Menino Jesus. Eu hoje era incapaz, nem por distração, de dizer que «a direcção do meu olhar é o dedo dele apontando». Eu era incapaz de dizer que «ele brinca com os meus sonhos» e vira uns de pernas para o ar, e põe uns em cima dos outros, e outras coisas assim. Enfim, eu era incapaz de escrever o poema hoje, e afinal isso é que quer dizer tudo.»
Defendi o poema, e as próprias frases que Caeiro nele incriminava.
«Não, não têm defesa. São absolutamente falsas. A direcção de um olhar não é um dedo: é a direcção de um olhar. Não se brinca com sonhos como se fossem pedras ou caixas de fósforos vazias. E tudo aquilo mesmo não é nada. Foi uma distracção minha e eu também existo nas minhas distracções, embora distraidamente.
«Lembro-me perfeitamente de como escrevi esse poema. O Padre B... tinha estado lá em casa a falar com a minha tia e esteve a dizer tantas coisas que me irritaram que eu escrevi o poema para respirar. Por isso é que ele está fora da minha respiração vulgar. Mas o estado de irritação é um estado falso em mim; por isso o poema não está inteiramente certo comigo, mas só com a minha irritação e com a pessoa a mais que a irritação é quando a gente a tem.
«Hoje, se estivesse irritado - o que já é muito difícil de acontecer - eu não escreveria coisa nenhuma. Deixava a irritação irritar-se. Depois, quando sentisse vontade de escrever, escrevia. Deixava o escrever escrever-se.
«Ainda hoje, de vez em quando, escrevo um ou outro poema com que não concordo; mas escrevo-o. Assim como acho interessante toda a gente por não ser eu, acho às vezes interessante um ou outro momento em que não sou eu. Em todo o caso, já hoje me não é possível afastar-me tanto do que quero como no poema sobre o Menino Jesus. Posso afastar-me de mim, mas já não me afasto da Realidade.»
Durante uns momentos, Caeiro esteve silencioso. Depois acrescentou:
«O poema de agora em que me afastei mais de mim é aquele que escrevi o mês passado, depois daquela conversa entre o Ricardo Reis e o António Mora sobre o paganismo e os deuses.» (Referia-se ao poema (...) dos Inconjuntos)
«Ouvi-os, e pus-me a imaginar como é que se imaginava uma religião. E lembrou-me que deveria ser assim. Por isso escrevi o poema, não como acto poético mas como acto de imaginação... Sim, como se estivesse contando um conto a uma criança. Tinha que pôr lá o Príncipe... Eu também posso fazer contos de fadas - mas só uma vez, é claro...»
«Há um outro poema seu», disse eu, «que está um pouco nessas condições.» E, como Caeiro olhasse a pergunta, «É aquele em que v., falando de um homem numa casa iluminada, à distância, diz, quando deixa de ver o homem, que ele deixou de ser real». (Trata-se, como é de ver, do poema (...) dos Inconjuntos).
«Eu não digo que ele deixou de ser real: digo que ele deixou de ser real para mim. Não quero dizer que ele deixasse de ser visível para quem esteja onde o veja. «Deixou de ser visível para mim. Pode até ter morrido.»
«V. admite, então, duas formas de realidade?»
«Muito mais do que duas», respondeu inesperadamente o meu mestre Caeiro.
«V. bem vê... Aquela cadeira é madeira e aquela cadeira é madeira, e aquela cadeira é a substância de que a madeira é feita, e que não sei o que é na química, e aquela cadeira é talvez - é com certeza - muitas outras coisas mais. Mas é-as todas. Se a vejo é principalmente cadeira; se a toco é principalmente madeira; se a mordesse e tomasse o sabor da madeira, ela seria principalmente a composição da madeira. São como o lado direito e o esquerdo, e a frente e as costas de qualquer coisa. Todos os lados são reais, cada um do seu lado. O homem que eu deixei de ver seria real, mas era de outro lado; como eu não estava desse lado, deixou de ser real para mim.
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.
- 378.«Notas para a recordação do meu mestre Caeiro»