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Poética

28. Erostratus

Pessoa dissertou longamente sobre a imortalidade das obras literárias.
[ilustração: Júlio Pomar. «Baudelaire, Edgar Poe, Mallarmé e Fernando Pessoa». 1983.  Col. Manuel de Brito.
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«A posteridade só gosta de escritores concisos.»
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A nossa época não é para longos poemas, pois o sentido da proporção e construção são qualidades que não possuímos. A nossa época é de poemetos, curtas produções líricas, sonetos e canções. A nossa sobrevivência nas eras vindouras assumirá muito provavelmente a forma de Cancioneiros, como aqueles onde se guardam e sobrevivem os trovadores da Provença e os poetas cortesãos do reinado de D. Dinis. Tudo quanto ficará de várias épocas da nossa poesia será (à excepção de grandes nomes como Dante ou Milton), para cada nação, uma colectânea de poemas como a Antologia Grega, possivelmente [?] mais a concretização de um espírito geral do que a soma de numerosos poemas escritos por muitos indivíduos — afinal (...) uma publicação anónima.

Mesmo poemas como Adonais talvez não sobrevivam: os sonhos não sobrevivem. Prometheus Unbound perderá o seu fulgor, e na antologia inglesa do futuro só um ou dois poemas dele extraídos falarão de Shelley à eternidade.

O tempo depressa despacha quem o despacha à pressa. Saturno devora os seus próprios filhos, não só no sentido de consumir ele próprio o que produz, mas também no de consumir os que são seus filhos na medida em que mantêm o olhar fixado na sua época e não pedem uma insujeição abstracta ao tempo (a era jupiteriana da alma), ou o lugar imutável da Beleza imortal que Platão amava.

Há uma nota de imortalidade, uma música de permanência, subtilmente entretecida na substância de alguns ritmos e nas melodias de alguns poemas. Há um ritmo de outra linguagem em que o ouvido atento pode descortinar a nota da confiança de um deus na sua divindade.

Esta nota soa nos sonetos de Milton, em Lycidas; não soa nos de Shakespeare, mesmo quando falam de algo parecido com ela. Há um equilíbrio, uma calma, uma liberdade que não habitam a febre da inspiração. As sibilas e as profetisas é que são inspiradas, não os próprios Deuses.

No Moïse de Vigny, no Booz Endormi de Hugo, ecoa esta nota. De todos os poetas franceses, Vigny é o que anda mais próximo dela, embora não a logre percutir com muita frequência.

As épocas vindouras terão demasiados poetas de (...) entre os quais escolher.

Não pode sobreviver demasiado. “A posteridade”, disse Faguet, “só gosta de escritores concisos”; isto é verdade, e também de um número conciso de escritores. Demasiado é muito pouco.

Há um provérbio infantil segundo o qual não se pode comer um bolo e ficar com ele à mesma; e um outro [...] que não se pode servir ao mesmo tempo Deus e Mammon. Não se pode servir simultaneamente a nossa época e todas as épocas, nem escrever o mesmo poema para deuses e homens.

s.d.

“Erostratus”. in Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.

 - 284 t. 41a.

Trad.: Jorge Rosa