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Poética

24. Símbolo

O que distingue a literatura da música é a linguagem simbólica.
[ilustração: Fernando Lopes Graça (1906-199?). Uma canção de F.P. musicada. Partitura. 1934. in Presença, nº 48, 1936.
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«Porque não haverá de alma para alma uma comunicação oculta, um entendimento sem palavras?»
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A virtude principal da literatura - o não ser música - é ao mesmo tempo o seu principal defeito. Tem que ser composta e expressa em uma língua qualquer. Tem, portanto, por mais largamente que essa língua seja falada ou conhecida, que se não dirigir plenariamente à maioria do género humano. Aquilo por onde é mais explícita que qualquer outra arte, por isso mesmo é menos universal que ela.

Ocorre, pois, perguntar por que processo, em literatura, é alguém universalmente célebre, como, ainda que poucos, há relativamente tantos que o são; porque processo são célebres no espaço, e sobretudo no espaço e no tempo, quando forçosamente, e mormente na poesia, que é a espécie literária mais alta, nenhuma tradução, supondo que existe, pode dar conhecimento da obra em sua completa e verdadeira vida.

Porque o certo é que, a maioria de nós, não mentimos nem fingimos quando, ignorantes do grego, sofremos o entusiasmo de Homero, ou, hóspedes e peregrinos no latim, temos o culto de Horácio ou de Catulo. Não mentimos nem fingimos; pressentimos. E esse pressentimento, feito de não sei que misto de intuição, de sugestão e de entendimento obscuro, é uma espécie de tradutor invisível, que acompanha pelas eras fora, e torna universal como a música, a arte dada em linguagem, esse produto de Babel, com cuja queda o homem pela segunda vez caiu.

O que há de mais alto neste mundo fala, quer queira quer não, uma linguagem simbólica, entendida por poucos com a verdadeira chave hermética, a inteligência, entendida por mais com o instinto de que há que entender, que é a intuição. São os primeiros, para o caso da obra literária, os que conhecem como naturais a língua em que ela está escrita; são os segundos os que a não conhecem assim, ou de todo a não conhecem, mas que, não conhecendo a língua, conhecem todavia a obra.

Mas há mais, e mais estranho. Podemos, por intuição, ou o que quer que seja, figurar-nos a alma e a vida de uma obra poética de que não conhecemos nada, ou, no melhor, não conhecemos mais que uma tradução em prosa, que é outra forma, mais complicada, do mesmo nada. Muitos de nós, porém, nos figuramos, com razoável exactidão, a alma e a vida de obras que nunca lemos, por vagas reminiscências de referencias, por obscuras e casuais alusões, ou de obras, ainda, em idiomas estranhos, e de que não há, ou pelo menos nunca lemos, tradução em idioma que no-lo não seja. Aqui o tradutor invisível opera invisivelmente. Já não intuicionamos: adivinhamos. E como se houvesse em nós uma parte superior da alma que soubesse por condição todos os idiomas e tivesse lido por natureza todas as obras.

Afinal, que é uma obra literária senão a projecção em linguagem de um estado de espírito, ou de uma alma humana? E essa obra é o símbolo vivo da alma que a escreveu (compôs), ou do momento dessa alma - uma pequena alma ocasional - que a projectou. Porque não haverá de alma para alma uma comunicação oculta, um entendimento sem palavras, pelo qual adivinhemos a sombra visível pelo conhecimento do corpo invisível que a projecta, e entendemos o símbolo, não por o conhecermos visto, mas por sabermos aquilo de que é símbolo?

Quem sabe, até, se em qualquer estado antenatal, não vimos frente a frente a obra em seu espírito, que não no corpo verbal que aqui tem; que, ouvindo aqui só falar nela, desde logo sabemos de que se trata, na sua verdadeira essência e vida; e que, pois, lendo mal, ou nem sequer lendo, não é em nós suscitado, não um entendimento, ainda que intuitivo, mas uma funda e subtil recordação?

Quem sabe, ainda, se, nesse estado antenatal, livres ainda do espaço e do tempo, não vimos já tudo, aqui hoje passado ou aqui hoje futuro, sub specie aeternitatis; e assim, se pudermos dispertar em nós essa anamnesis, não estamos hoje, nós mesmos nossos tradutores invisíveis, senhores inconscientes das obras ainda por nascer no decurso futuro do mundo?

Não sorrio por isso - ou, melhor, não sorrio sempre, nem prontamente - dos que me falam de Shakespeare sem que saibam o inglês - e escolho Shakespeare para exemplo porque ele é dos poetas mais fielmente casados com a índole e as possibilidades do idioma em que compôs, e, como bom marido, com as maneiras e formas de enganar esse idioma. Não sorrio. Quem sabe se, em qualquer incamação anterior, o que me fala não conheceu Shakespeare como aqui foi, não falou com ele como aqui falou, e não está sendo, sem que ele ou eu o saiba, o tradutor invisível de um grande amigo ignorado?

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

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