Poética
9. Orpheu
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«Cada ideia, cada sensação tem que ser expressa de maneira diferente daquela que exprime outra.»
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Quando em Março de 1915 surgiu em Lisboa a revista Orpheu, foi-lhe feito, pela gente que representa entre nós aquilo a que em outros países se chama a crítica, um acolhimento adverso e escandaloso. O resultado foi, como se sabe, que essa revista constituiu um sucesso de livraria. A mesma ordem de manifestações acolheu o aparecimento do segundo número, salvo que determinadas peças literárias, que esse número continha levaram a um auge de indignação dispersa a adversa opinião popular a seu respeito.
Orpheu passou para as revistas de ano, e para os acasos das conversas particulares. Um incidente pitoresco, acontecido com um dos jornais de Lisboa, veio ornamentar de escândalo político o êxito esplêndido da revista.
Algumas pessoas porém terá havido que pensassem decentemente sobre o assunto. Certas curiosidades civilizadas, emergindo de entre o nosso meio de carbonários e de gatunos políticos, quiseram deveras saber a que vinha esta revista. Não podiam acreditar que fosse uma pura blague, por isso que lhe sentiam demasiada força para ser isso apenas. Mas os seus cérebros, desacostumados ainda às manifestações originais e europeias da literatura, não podiam, ao mesmo tempo, julgar inteiramente séria essa tentativa.
Urgia, pois, que àquela parte do público ledor que manifestou, ainda que só para si própria, este interesse, os sensacionistas dessem a satisfação de uma explicação integral. Este livro visa a esse fim. Nele procuraremos expor o que seja, em toda a sua opulenta complexidade, o movimento sensacionista português.
O que é, pois, o sensacionismo?
Os Fundamentos do Sensacionismo
1. — O Sensacionismo difere de todas as atitudes literárias em ser aberto, e não restrito. Ao passo que todas as escolas literárias partem de um certo número de princípios, assentam sobre determinadas bases, o Sensacionismo não assenta sobre base nenhuma. Qualquer escola literária ou artística acha que a arte deve ser determinada coisa; o sensacionismo acha que a arte não deve ser determinada coisa.
Assim, ao passo que qualquer corrente literária tem, em gera!, por típico excluir as outras, o Sensacionismo tem por típico admitir as outras todas. Assim, é inimigo de todas, por isso que todas são limitadas. O Sensacionismo a todas aceita, com a condição de não aceitar nenhuma separadamente.
O Sensacionismo é assim porque, para o Sensacionista, cada ideia, cada sensação a exprimir tem de ser expressa de uma maneira diferente daquela que exprime outra. Há regras, porém, dentro das quais essa ideia ou sensação tem, basilarmente, que ser expressa? Sem dúvida que as há, e elas são as regras fundamentais da arte. São três:
1.ª — Toda a arte é criação, e está portanto subordinada ao princípio fundamental de toda a criação: criar um todo objectivo, para o que é preciso criar um todo parecido com os todos que há na Natureza — isto é, um todo em que haja a precisa harmonia entre o todo e as partes componentes, não harmonia feita e exterior, mas harmonia interna e orgânica. Um poema é um animal, disse Aristóteles; e assim é. Um poema é um ente vivo. Só um ocultista, é claro, é que pode compreender o sentido dessa expressão, nem é permissível, talvez, explicá-la muito detalhadamente, ou mais do que o nada que já se disse.
2.ª — Toda a arte é expressão de qualquer fenómeno psíquico. A arte, portanto, consiste na adequação, tão exacta quanto caiba na competência artística do fautor, da expressão à coisa que quer exprimir. De onde se deduz que todos os estilos são admissíveis, e que não há estilo simples nem complexo, nem estilo estranho nem vulgar. Há ideias vulgares e ideias elevadas, há sensações simples e sensações complexas; e há criaturas que só têm ideias vulgares, e criaturas que muitas vezes têm ideias elevadas. Conforme a ideia, o estilo, a expressão Não há para a arte critério exterior. O fim da arte não é ser compreensível, porque a arte não é a propaganda política ou imoral.
3.ª — A arte não tem, para o artista, fim social. Tem, sim, um destino social, mas o artista nunca sabe qual ele é, porque a Natureza o oculta no labirinto dos seus desígnios. Eu explico melhor. O artista deve escrever, pintar, esculpir, sem olhar a outra coisa que ao que escreve, pinta, ou esculpe. Deve escrever sem olhar para fora de si. Por isso a arte não deve ser, propositadamente, moral nem imoral. É tão vergonhoso fazer arte moral como fazer arte imoral. Ambas as [coisas] implicam que o artista desceu a preocupar-se com a gente de lá fora. Tão inferior é, neste ponto, um sermonário católico como um triste Wilde ou d'Annunzio, sempre com a preocupação de irritar a plateia. Irritar é um modo de agradar. Todas as criaturas que gostam de mulheres sabem isso, e eu também sei.
A arte tem, porém, um resultado social, mas isso é com a Natureza e não com o poeta ou o pintor. A Natureza produz determinado artista para um fim que esse próprio artista desconhece, pela simples razão que ele não é a Natureza. Quanto mais ele queira dar um fim à sua arte, mais ele se afasta do verdadeiro fim dela — que ele não sabe qual é, mas que a Natureza escondeu dentro dele, no mistério da sua personalidade espontânea, da sua inspiração instintiva. Todo o artista que dá à sua arte um fim extra-artístico é um infame. É, além disso, um degenerado no pior dos sentidos que a palavra não tem. É, além disso e por isso, um anti-social. A maneira de o artista colaborar utilmente na vida da sociedade a que pertence — é não colaborar nela.
Assim lhe ordenou a Natureza que fizesse, quando o criou artista, e não político ou comerciante.
O bom funcionamento de qualquer sociedade depende, como até alguns jornalistas já sabem, da perfeita divisão de trabalho quando o membro de um grupo do trabalho social procura acrescentar ao seu trabalho como tal membro elementos pertencentes ao trabalho de outros. Quando o artista procura dar um fim extra-artístico à sua arte, dá um fim extra-artístico à sua personalidade, e a Natureza, que o criou artista, não quis isso.
A indiferença para com a Pátria, para com a Religião, para com as chamadas virtudes cívicas e os apetrechos mentais do instinto gregário são não úteis, mas absolutamente deveres do Artista. Se isto é amoral, a culpa é da Natureza que o mandou criar beleza e não pregar a alguém.
Quanto mais instintivamente se fizer essa divisão do trabalho social, mais perfeito será o funcionamento da sociedade, porque, sendo instintiva essa divisão, maior revela ser o estado de espontânea adaptação da sociedade à vida que tem que viver. Por isso o artista deve eliminar de si cuidadosamente todas as coisas psíquicas que não pertencem à arte.
É perfeitamente lógico que um artista pregue a Decadência na sua arte, e, se for político, pregue a Vida e a Força na sua política. É , mesmo, assim que deve ser. Não se admite que um artista escreva poemas patrióticos, como não se admite que um político escreva artigos anti-patrióticos.
Qual, porém, a relação que existe entre o modo de escrever que, perante o público e os «críticos», tem tipificado o Sensacionismo e esta tese que expomos? Se o Sensacionismo é esta coisa liberal, ampla, acolhedora, que apontámos, em que é que não é errado (porque o não é) chamar Sensacionismo, considerar como tipicamente Sensacionista, essa corrente estranha a que pertencem a maioria das composições de Orpheu, os livros de Sá-Carneiro, excepto Princípio, e outras composições análogas?
É muito simples.
Dissemos que um dos princípios sobre que assentava o Sensacionismo — mau grado, é claro, ele não assentar em princípio nenhum — é o da expressão ser condicionada pela emoção a exprimir. Dissemos que cada ideia, pela sua virtualidade íntima, pela sua simplicidade ou índole complexa, impõe que se exprima de modo símplice ou complexo. Esta tese — que é a verdadeira tese artística — abrange e admite todas as espécies de expressões, desde a mais simples quadra popular, que só podia ser expressa nessa linguagem e seria mais mal expressa se fosse expressa em linguagem mais complexa, até ao mais avançado desarticulamento de linguagem lógica que se encontra nas páginas de Orpheu. Acontece que a geração a que pertencemos — mercê de razões civilizacionais que seria tão ocioso, como prolixo, estar a expor — traz consigo uma riqueza de sensação, uma complexidade de emoção, uma tenuidade e intercruzamento de vibração intelectual, que nenhuma outra geração nasceu possuindo. Veja-se. Sobre uma vida social agitada, directamente como intelectualmente, pelas complexas consequências da irrupção para a prática das ideias da Revolução Francesa, veio cair todo o complexo e confuso estado social resultante da proliferação sempre crescente das indústrias, do enxamear cada vez mais intenso das actividades comerciais modernas. O aumento das facilidades de transporte, o exagero das possibilidades do conforto e da vantagem, o acréscimo vertiginoso dos meios de diversão e de passatempo — todas essas circunstâncias, combinadas, entrepenetradas, agindo quotidianamente, criaram, definiram, um tipo de civilização em que a emoção, a inteligência, a vontade, participam da rapidez, da instabilidade e da violência das manifestações propriamente, diariamente típicas do estádio civilizacional. Em cada homem moderno há um neurasténico que tem que trabalhar. A tensão nervosa tornou-se um estado normal na maioria dos incluídos na marcha das coisas públicas e sociais. A hiper-excitação passou a ser regra.
O aumento das comunicações internacionalizou facilmente isto tudo, com o auxílio que trouxe o aumento da cultura e da capacidade de cultura, que é outra coisa, e mais importante para o caso. De modo que esse estado de espírito, que, de per si, parece que devia caracterizar apenas os países no auge da vida industrial e comercial, foi parar a outros, mais apagados e quietos, e de um lado da Europa ao outro uma rede de nervos define o estado das almas nesta Hora de fogo e de treva.
Se isto tudo tivesse acontecido numa época de bases assentes, o resultado seria de menor relevo. Mas acontece num período em que se sofre ainda da dissolução de antigos regimes, em que a morte tocou o princípio monárquico, em que o gusano da crítica esboroou de todo o edifício da fé religiosa. Foi mais longe, mais tarde, o efeito do espírito crítico: como era fatal que acontecesse, ele virou-se sobre os ídolos que mal erguera, as forças defensoras das ideias antigas tomaram-no como arma contra as ideias novas. E, assim, à confiança na ciência, que caracterizara o período darwinista do século ido, à atitude positiva em que cristalizara a mentalidade coeva das descobertas, a cada dia feitas, da física e da química e da biologia, seguiu-se uma crítica a essas próprias ideias, um inquérito sobre as bases em que essas novas fórmulas assentavam. Perguntou-se que maior razão para a certeza teria a metafísica da ciência do que a metafísica da crença: a resposta foi a atitude pragmatista, a atitude neo-espiritualista, as inúmeras formas de atitudes religiosas, desde o neocomtismo católico ao neotomismo da mesma seita, desde a filosofia religiosa de um Ritschl à de um ou outro low ou broad churchman na Inglaterra teológica e pseudo-racionalista. O desenvolvimento da sociologia, que, embora ainda não seja uma ciência, é já, contudo, tanto uma armazenagem de factos como uma direcção do espírito científico, veio aluir mais a segurança dos cientistas das duas gerações anteriores. O papel social das religiões, a (pelo menos aparente) absurdez dos lemas fraternitários e igualitários, passaram a ser assunto de dúvida. A rapidez, a precipitação da época coloriam tudo. É, assim, difícil, cada vez mais difícil, se tornava descortinar, através da poeira da literatura e da ciência das colunas de jornais, quais as forças eternas operando, quais os homens dignos de guiar hoje, quais as permanências, as seriedades, os esteios e os apoios.
De modo que chegámos a uma época singular, em que nos aparecem todos os característicos de uma decadência, conjugados com todos os característicos de uma vida intensa e progressiva. A moral familiar e social desceu ao nível da decadência do império romano.
O mercantilismo político, a dissolução nacional chegou ao fundo. Mas, com isto tudo, progrediam as indústrias, multiplicava-se o comércio, a ciência continuava descobrindo, dia a dia os confortos aumentavam e as complexidades da vida se tornavam mais complexas. Só, como distintivo de uma decadência, um fenómeno inequívoco havia — o abaixamento no nível dos homens representativos. Ninguém, na literatura, no nível dos grandes românticos, ou mesmo dos mestres realistas. Na arte, idêntica penúria. Na política, o mesmo. E assim em tudo. Na própria ciência, tão inferior no seu nível, então típica do século, o mesmo desnivelamento, o mesmo desgaste na superioridade dos homens condutores.
Assim, cada um de nós nasceu doente de toda esta complexidade. Em cada alma giram os volantes de todas as fábricas do mundo, em cada alma passam todos os comboios do globo, todas as grandes avenidas de todas as grandes cidades acabam em cada uma das nossas almas. Todas as questões sociais, todas as perturbações políticas, por pouco que com elas nos preocupemos, entram no nosso organismo psíquico, no ar que respiramos psiquicamente, passam para o nosso sangue espiritual, passam a ser, inquietamente, nossas como qualquer coisa que seja nossa.
Qual a arte que deve corresponder a este estado de civilização?
Vimos já que o papel da arte é de, ao mesmo tempo, interpretar e opor-se à realidade social sua coeva. (This must have been well determined before).
Como interpretar esta época, opondo-se-lhe.
Três maneiras são possíveis.
Podemos dividir os característicos da época actual em três grupos, como vimos. Temos a decadência proveniente da falência de todos os ideais passados e mesmo recentes. Temos a intensidade, a febre, a actividade turbulenta da vida moderna. Temos, finalmente, a riqueza inédita de emoções, de ideias, de febres e de delírios que a Hora europeia nos traz.
A arte moderna deve portanto:
1) ou cultivar serenamente o sentimento decadente, escrupulizando em todas as coisas que são características da decadência — a imitação dos clássicos, a limpidez da linguagem, a cura excessiva da forma, características da impotência de criar;
2) ou, fazendo por vibrar com toda a beleza do contemporâneo, com toda a onda de máquinas, comércios, indústrias (...)
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
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