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Poética

11. Estética

Álvaro de Campos define uma nova «estética não aristotélica».
[ilustração: Cruzeiro Seixas. «Colaboração com Chirico e Luca Signorelli». 1968.
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«A minha teoria baseia-se - ao contrário da aristotélica, que assenta na ideia de beleza - na ideia de força.»
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APONTAMENTOS PARA UMA ESTÉTICA NÃO-ARISTOTÉLICA

                I

Toda a gente sabe hoje, depois de o saber, que há geometrias chamadas não-euclidianas, isto é, que partem de postulados diferentes dos de Euclides, e chegam a conclusões diferentes. Estas geometrias têm cada uma um desenvolvimento lógico: são sistemas interpretativos independentes, independentemente aplicáveis à realidade. Foi fecundo em matemática e além da matemática (Einstein bastante lhe deve) este processo de multiplicar as geometrias «verdadeiras», e fazer, por assim dizer, abstracções de vários tipos na mesma realidade objectiva.

Ora, assim como se podem formar, se formaram, e foi útil que se formassem, geometrias não euclidianas, não sei que razão se poderá invocar para que não possam formar-se, não se formem, e não seja útil que se formem, estéticas não-aristotélicas .

Há muito tempo que, sem reparar que o fazia, formulei uma estética não aristotélica. Quero deixar escritos estes apontamentos para ela, em paralelo, não sei se modesto, com a tese de Riemann sobre a geometria clássica.

Chamo estética aristotélica à que pretende que o fim da arte é a beleza, ou, dizendo melhor, a produção nos outros da mesma impressão que a que nasce da contemplação ou sensação das coisas belas. Para a arte clássica — e as suas derivadas, a romântica, a decadente, e outras assim — a beleza é o fim; divergem apenas os caminhos para esse fim, exactamente como em matemática se podem fazer diversas demonstrações do mesmo teorema. A arte clássica deu-nos obras grandes e sublimes, o que não quer dizer que a teoria da construção dessas obras seja certa, ou que seja a única teoria «certa». É frequente, aliás, e tanto na vida teórica como na prática, chegar-se a um resultado certo por processos incertos ou mesmo errados.

Creio poder formular uma estética baseada, não na ideia de beleza, mas na de força — tomando, é claro, a palavra força no seu sentido abstracto e científico; porque se fosse no vulgar, tratar-se-ia, de certa maneira, apenas de uma forma disfarçada de beleza. Esta nova estética, ao mesmo tempo que admite como boas grande número de obras clássicas — admitindo-as porém por uma razão diferente da dos aristotélicos, que foi naturalmente também a dos seus autores — estabelece uma possibilidade de construírem novas espécies de obras de arte que quem sustente a teoria aristotélica não poderia prever ou aceitar.

A arte, para mim, é, como toda a actividade, um indício de força, ou energia; mas, como a arte é produzida por entes vivos, sendo pois um produto da vida, as formas da força que se manifestam na arte são as formas da força que se manifestam na vida. Ora a força vital é dupla, de integração e de desintegração — anabolismo e catabolismo, como dizem os fisiologistas. Sem a coexistência e equilíbrio destas duas forças não há vida, pois a pura integração é a ausência da vida e a pura desintegração é a morte. Como estas forças essencialmente se opõem e se equilibram para haver, e enquanto há, vida, a vida é uma acção acompanhada automática e intrinsecamente da reacção correspondente. E é no automatismo da reacção que reside o fenómeno específico da vida.

O valor de uma vida, isto é, a vitalidade de um organismo, reside pois na intensidade da sua força de reacção. Como, porém, esta reacção é automática, e equilibra a acção que a provoca, igual, isto é, igualmente grande, tem que ser a força de acção, isto é, de desintegração. Para haver intensidade ou valor vital (no conceito de vida não pode caber outro conceito de valor que não o de intensidade, isto é, de grau de vida), ou vitalidade, é forçoso que essas duas forças sejam ambas intensas, mas iguais, pois, se o não forem, não só não há equilíbrio mas também uma das forças é pequena, pelo menos em relação à outra. Assim o equilíbrio vital é, não um facto directo — como querem para a arte (não esqueçamos o fim destes apontamentos) os aristotélicos — mas o resultado abstracto do encontro de dois factos.

Ora a arte, como é feita por se sentir e para se sentir — sem o que seria ciência ou propaganda — baseia-se na sensibilidade. A sensibilidade é pois a vida da arte. Dentro da sensibilidade, portanto, é que tem que haver a acção e a reacção que fazem a arte viver, a desintegração e integração que, equilibrando-se lhe dão vida. Se a força de integração viesse, na arte, de fora da sensibilidade, viria de fora da vida; não se trataria de uma reacção automática ou natural, mas de uma reacção mecânica ou artificial.

Como aplicaremos à arte o princípio vital de integração e desintegração? O problema não oferece dificuldades; como a maioria dos problemas, basta, para o resolver, ver bem que problema ele é. Indo ao aspecto fundamental da integração e da desintegração, isto é, à sua manifestação no mundo chamado inorgânico, vemos a integração manifestar-se como coesão, a desintegração como ruptibilidade, isto é, tendência a, por causas (neste nível) quase todas macroscopicamente externas — aliás perpetuamente operantes, em grau menor ou maior — o corpo se cindir, se quebrar, deixar de ser o corpo que é. No mundo chamado orgânico mantêm-se, variando o nome porque a forma de manifestação, estas duas forças. Na sensibilidade o princípio de coesão vem do indivíduo, que essa sensibilidade caracteriza, ou, antes, essa forma de sensibilidade, pois é a forma-tomando este termo no sentido abstracto e completo-que define o composto individualizado. Na sensibilidade o princípio de ruptibilidade está em variadíssimas forças, na sua maioria externas, que, porém se reflectem no indivíduo físico através da não-sensibilidade, isto é, da inteligência e da vontade — a primeira tendendo a desintegrar a sensibilidade perturbando-a, inserindo nela elementos (ideias) gerais e assim contrários necessariamente aos individuais, a tornar a sensibilidade humana em vez de pessoal; a segunda tendendo a desintegrar a sensibilidade limitando-a, tirando-lhe todos aqueles elementos que não sirvam, ou, por excessivos, à acção em si, ou, por supérfluos, à acção rápida e perfeita, a tornar pois a sensibilidade centrífuga em vez de centrípeta.

Contra estas tendências disruptivas a sensibilidade reage, para coerir, e como toda a vida, reage por uma forma especial de coesão, que é a assimilação, isto é, a conversão dos elementos das forças estranhas em elementos próprios, em substância sua.

Assim, ao contrário da estética aristotélica, que exige que o indivíduo generalize ou humanize a sua sensibilidade, necessariamente particular e pessoal, nesta teoria o percurso indicado é inverso: é o geral que deve ser particularizado, o humano que se deve pessoalizar, o «exterior» que se deve tornar «interior».

Creio esta teoria mais lógica — se é que há lógica — que a aristotélica; e creio-o pela simples razão de que, nela, a arte fica o contrário da ciência, o que na aristotélica não acontece. Na estética aristotélica, como na ciência, parte-se, em arte, do particular para o geral; nesta teoria parte-se, em arte, do geral para o particular, ao contrário de na ciência, em que, com efeito e sem dúvida, é do particular para o geral que se parte. E como ciência e arte são, como é intuitivo e axiomático, actividades opostas, opostos devem ser os seus modos de manifestação, e mais provavelmente certa a teoria que dê esses modos como realmente opostos que aquela que os dê como convergentes ou semelhantes.

II

Acima de tudo, a arte é um fenómeno social. Ora no homem há duas qualidades directamente sociais, isto é, dizendo directamente respeito à sua vida social: o espírito gregário, que o faz sentir-se igual aos outros homens ou parecido com eles, e portanto aproximar-se deles; e o espírito individual ou separativo, que o faz afastar-se deles, colocar-se em oposição a eles, ser seu concorrente, seu inimigo, ou seu meio inimigo. Qualquer indivíduo é ao mesmo tempo indivíduo e humano: difere de todos os outros e parece-se com todos os outros.

Uma vida social sã no indivíduo resulta do equilíbrio destes dois sentimentos: uma fraternidade agressiva define o homem social e são. Ora se a arte é um fenómeno social, no ser social vai já o elemento gregário; resta saber onde está nela o elemento separativo. Não o podemos buscar fora da arte, porque então haveria na arte um elemento estranho a ela, e ela seria tanto menos arte; temos que o buscar dentro da arte — isto é, o elemento separativo tem que se manifestar na arte também, e como arte.

Quer isto dizer que, na arte, que é antes de tudo um fenómeno social, tanto o espírito gregário como o separativo têm que assumir a forma social.

Ora o espírito separativo, antigregário, tem, é claro, duas formas: o afastamento dos outros, e a imposição do indivíduo aos outros, a sobreposição do indivíduo aos outros — o isolamento e o domínio. Destas duas formas a segunda é que é a forma social, pois isolar-se é deixar de ser social. A arte, portanto, é antes de tudo, um esforço para dominar os outros. Há, evidentemente, várias maneiras de dominar ou procurar dominar os outros; a arte é uma delas.

Ora há dois processos de dominar ou vencer — captar e subjugar. Captar é o modo gregário de dominar ou vencer; subjugar é o modo antigregário de dominar ou vencer.

Ora em todas as actividades sociais superiores há estes dois processos, porque fatalmente não pode haver outros; e se me refiro distintamente às actividades sociais superiores é que são estas, porque são superiores, as que envolvem a ideia de domínio. São três as actividades sociais superiores — a política, a religião e a arte. Em cada um destes ramos da actividade social superior há o processo de captação e o processo de subjugação.

Na política há a democracia, que é a política de captação, e a ditadura, que é a política de subjugação. É democrático todo o sistema que vive de agradar e de captar — seja a captação oligárquica ou plutocrática da democracia moderna, que, no fundo, não capta senão certas minorias, que incluem ou excluem a maioria autêntica; seja a captação mística e representativa da monarquia medieval, único sistema portanto verdadeiramente democrático, pois só a monarquia, pelo seu carácter essencialmente místico, pode captar as maiorias e os conjuntos, organicamente místicos na sua profunda vida mental. É ditatorial todo o sistema político que vive de subordinar e de subjugar — seja o despotismo artificial do tirano de força física, inorgânico e irrepresentativo, como nos impérios decadentes e nas ditaduras políticas; seja o despotismo natural do tirano de força mental, orgânico e representativo, enviado oculto, na ocasião da sua hora, dos destinos subconscientes de um povo.

Na religião há a metafísica, que é a religião de captação, porque tenta insinuar-se pelo raciocínio, e explicar ou provar é querer captar; e há a religião propriamente dita, que é o sistema de subjugação, porque subjuga pelo dogma improvado e pelo ritual inexplicável, agindo assim directa e superiormente sobre a confusão das almas.

Assim como na política e na religião, assim na arte. Há uma arte que domina captando, outra que domina subjugando. A primeira é a arte segundo Aristóteles, a segunda a arte como eu a entendo e defendo. A primeira baseia-se naturalmente na ideia de beleza, porque se baseia no que agrada; baseia-se na inteligência, porque se baseia no que, por ser geral, é compreensível e por isso agradável; baseia-se na unidade artificial, construída e inorgânica, e portanto visível, como a de uma máquina, e por isso apreciável e agradável. A segunda baseia-se naturalmente na ideia de força, porque se baseia no que subjuga; baseia-se na sensibilidade, porque é a sensibilidade que é particular e pessoal, e é com o que é particular e pessoal em nós que dominamos, porque, se não fosse assim, dominar seria perder a personalidade, ou, em outras palavras, ser dominado; e baseia-se na unidade espontânea e orgânica, natural, que pode ser sentida ou não sentida, mas que nunca pode ser vista ou visível, porque não está ali para se ver.

Toda a arte parte da sensibilidade e nela realmente se baseia. Mas, ao passo que o artista aristotélico subordina a sua sensibilidade à sua inteligência, para poder tornar essa sensibilidade humana e universal, ou seja para a poder tornar acessível e agradável, e assim poder captar os outros, o artista não-aristotélico subordina tudo à sua sensibilidade, converte tudo em substância de sensibilidade, para assim, tornando a sua sensibilidade abstracta como a inteligência (sem deixar de ser sensibilidade), emissora como a vontade (sem que seja por isso vontade), se tornar um foco emissor abstracto sensível que force os outros, queiram eles ou não, a sentir o que ele sentiu, que os domine pela força inexplicável, como o atleta mais forte domina o mais fraco, como o ditador espontâneo subjuga o povo todo (porque é ele todo sintetizado e por isso mais forte que ele todo somado), como o fundador de religiões converte dogmática e absurdamente as almas alheias na substância de uma doutrina que, no fundo, não é senão ele próprio.

O artista verdadeiro é um foco dinamogéneo; o artista falso, ou aristotélico, é um mero aparelho transformador, destinado apenas a converter a corrente contínua da sua própria sensibilidade na corrente alterna da inteligência alheia.

Ora entre os artistas «clássicos», isto é, aristotélicos, há verdadeiros e falsos artistas; e também nos não-aristotélicos há verdadeiros artistas e há simples simuladores — porque não é a teoria que faz o artista, mas o ter nascido artista. O que porém entendo e defendo é que todo o verdadeiro artista está dentro da minha teoria, julgue-se ele aristotélico ou não; e todo o falso artista está dentro da teoria aristotélica, mesmo que pretenda ser não-aristotélico. É o que falta explicar e demonstrar.

A minha teoria estética baseia-se — ao contrário da aristotélica, que assenta na ideia de beleza — na ideia de força. Ora a ideia de beleza pode ser uma força. Quando a «ideia» de beleza seja uma «ideia» da sensibilidade, uma emoção e não uma ideia, uma disposição sensível do temperamento, essa «ideia» de beleza é uma força. Só quando é uma simples ideia intelectual de beleza é que não é uma força.

Assim a arte dos gregos é grande mesmo no meu critério, e sobretudo o é no meu critério. A beleza, a harmonia, a proporção não eram para os gregos conceitos da sua inteligência, mas disposições íntimas da sua sensibilidade. É por isso que eles eram um povo de estetas, procurando, exigindo a beleza todos, em tudo, sempre. É por isso que com tal violência emitiram a sua sensibilidade sobre o mundo futuro que ainda vivemos súbditos da opressão dela. A nossa sensibilidade, porém, é já tão diferente — de trabalhada que tem sido por tantas e tão prolongadas forças sociais — que já não podemos receber essa emissão com a sensibilidade, mas apenas com a inteligência. Consumou este nosso desastre estético a circunstância de que recebemos em geral essa emissão da sensibilidade grega através dos romanos e dos franceses. Os primeiros, embora próximos dos gregos no tempo, eram, e foram sempre, a tal ponto incapazes de sentimento estético que tiveram que se valer da inteligência para receber a emissão da estética grega. Os segundos, estreitos de sensibilidade e pseudovivazes de inteligência, capazes portanto de «gosto» mas não de emoção estética, deformaram a já deformada romanização do helenismo, fotografaram elegantemente a pintura romana de uma estátua grega. Já é grande, para quem souber medi-la, a distância que vai da «Ilíada» à «Eneida» — tão grande que a não oculta mesmo uma tradução; a de um Píndaro a um Horácio parece infinita. Mas não é menor a que separa mesmo um Homero bidimensional como Vergílio, ou um Píndaro em projecção de mercator como Horácio, da chateza morta dum Boileau, dum Corneille, dum Racine, de todo o insuperável lixo estético do «classicismo» francês, esse «classicismo» cuja retórica póstuma ainda estrangula e desvirtua a admirável sensibilidade emissora de Vítor Hugo.

Mas, assim como para os « clássicos», ou pseudoclássicos — os «aristotélicos» propriamente ditos — a beleza pode estar, não nas disposições da sua sensibilidade, mas só nas preocupações da sua razão, assim, para os não-aristotélicos postiços, pode a força ser uma ideia da inteligência e não uma disposição da sensibilidade. E assim como a simples ideia intelectual de beleza não habilita a criar beleza, porque só a sensibilidade verdadeiramente cria, porque verdadeiramente emite, assim também a simples ideia intelectual de força, ou de não-beleza, não habilita a criar, mais que a outra, a força ou a não-beleza que pretende criar. É por isso que há — e em que abundância os há! — simuladores da arte da força ou da não-beleza, que nem criam beleza nem não-beleza, porque positivamente não podem criar nada; que nem fazem arte aristotélica falsa, porque a não querem fazer, nem arte aristotélica falsa, porque não pode haver arte não-aristotélica falsa. Mas em tudo isto fazem sem querer, e ainda que mal, arte aristotélica, porque fazem arte com a inteligência, e não com a sensibilidade. A maioria, senão a totalidade, dos chamados realistas, naturalistas, simbolistas, futuristas, são simples simuladores, não direi sem talento, mas pelo menos, e só alguns, só com o talento da simulação. O que escrevem, pintam ou esculpem pode ter interesse, mas é o interesse dos acrósticos, dos desenhos de um só traço e de outras coisas assim. Logo que se lhe não chame «arte», está bem.

De resto, até hoje, data em que aparece pela primeira vez uma autêntica doutrina não aristotélica da arte, só houve três verdadeiras manifestações de arte não-aristotélica. A primeira está nos assombrosos poemas de Walt Whitman; a segunda está nos poemas mais que assombrosos do meu mestre Caeiro; a terceira está nas duas odes — a Ode Triunfal e a Ode Marítima — que publiquei no «Orpheu». Não pergunto se isto é imodéstia. Afirrno que é verdade.

                ÁLVARO DE CAMPOS

1924

Textos de Crítica e de Intervenção . Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980.

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1ª publ. in “Athena”, nº 3 e 4. Lisboa: Dez.-Jan. 1924-25.