Poética
20. Ritmo paragráfico
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«Quem sente deveras não fala em verso, nem mesmo em prosa, mas em grito ou acto.»
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RITMO PARAGRÁFICO
Tudo quanto é artificial no verso — a rima, o metro, a estrofe — é principalmente nocivo secundariamente. Não é tanto o mal que faz a rima, o metro, ou a estrofe em serem em si mesmas artificiais. O mal é que desviem a atenção da emoção ou do pensamento, criam novos pensamentos, e assim interrompem o que originalmente se pensaria.
Todos quantos escreveram em metro, em rima ou em estrofe, sabem que esses elementos regulares sugerem coisas que não estavam no pensamento original, sabem que são elementos activos em compelir o pensamento e a sua expressão a seguir um caminho que, salvo eles, não seguiria. Ora, se eu sinto profundamente uma coisa e a quero dizer profundamente, para que os outros a sintam profundamente, não quero ser desviado dessa profundeza com que sinto porque a palavra «amor» não rima com a palavra «queijada», ou porque «cebola» tem que ser «nabo» num ponto onde só cabem duas sílabas, ou porque «ontem» é um espondeu e tenho que pôr «pálido» para dar dáctilo.
O verbalismo extenuante de grandes sensibilidades poéticas como Vítor Hugo — capaz de alma, se tivesse a disciplina suficiente para ter indisciplina, de fazer formidáveis poemas de emoção — baseia-se absolutamente na preocupação de ter amor ou ódio em parelhas de alexandrinos, de ter que pensar e que sentir em rimas graves alternadas com rimas agudas, e de expor o que sente em dois alexandrinos um verso de seis dois alexandrinos um verso de seis, rima aabccb, etc. etc. Como se pode sentir nestas gaiolas?
O rio, que poderia correr grandemente no seu leito, extravasa para os campos; o que devia ser um curso torna-se uma cheia. parece que a imagem está às avessas, e que os metros, as rimas, as estrofes é que verdadeiramente se devem comparar às margens. Mas não é assim. As margens são as da nossa emoção natural. A rima ou o metro são uma espécie de erguer-se do leito do rio que faz transbordar este por uma forma desconhecida na natureza. Nem sequer é uma cheia natural.
É-se grande poeta assim? Pode ser-se. Mas é-se grande poeta apesar disto e não por causa disto. É-se grande poeta porque se é grande poeta, e não porque «courage» rima com «rage» ou «son» com «saucisson».
Se, ao desenvolver um poema que tem metro ou rima, a minha odeia pedir a palavra «amor», mas o metro ou a rima exigirem as sílabas ou o som que pode ser preenchido só pela palavra «afecto», adentro da possível ou plausível sinonímia, não é senão humano que eu empregue a palavra «afecto», dando o caso por fechado nesse particular. Mas o seguimento do poema será atacado pela circunstância de que a palavra «afecto» contém implícitas que não contém a palavra «amor», e, insensivelmente, quase sem dar por isso, ou até sem dar por isso, o seguimento do poema sofrerá um desvio, porque a minha própria ideia sofreu.
Admitida mesmo a artificialidade de toda a poesia, ninguém há que não reconheça que temos aqui artificialidade a mais. Que quem sente deveras não fala em verso, nem mesmo em prosa, mas em grito ou acto, é verdade; mas que quem sente um pouco menos deveras, e pode portanto falar em verso, tenha, ainda por cima, que falar em verso dos outros — porque outra coisa não é o metro e a rima do que uma imposição alheia — , isso é menos que verdade, isso, organicamente, não é nada.
Sei bem que a própria palavra é uma instituição dos outros, mas a substância da vida é a assimilação, isto é, a conversão do que é outro em nosso. E quanto mais nosso tornarmos o que é dos outros, mais vivemos. Para tornarmos mais nosso o que é dos outros, é preciso que ele, inicialmente, seja o menos possível dos outros já, para que mais facilmente seja nosso. A força da alma humana não é tal, que trabalhe seguramente através de grandes dificuldades. Napoleão disse que não conhecia a palavra impossível, mas deve tê-la encontrado em Moscovo e Waterloo, se a não tinha visto antes. Depois, deve ter ficado a conhecer a palavra, em toda a sua expressão maligna.
Disse Goethe que «trabalhar dentro de limites revela o mestre». Revela, mas o mestre no sentido do jongleur de possibilidades, do artista de circo da inteligência superior. Dar uma cambalhota em que o corpo passe através de um arco de papel, revela o mestre no sentido de Goethe, porque o arco de papel é um limite, mas, na vida, e na arte que é a vida, não há limites dessa ordem. O limite que temos é a nossa própria personalidade; é o sermos nós e não a vida inteira. É isso o limite dentro do qual temos que trabalhar, porque não podemos trabalhar fora dele. E, para limite, basta esse.
Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença,
1994.
- 271.1ª versão in Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.