Vida e Obra
15. Desassossego
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Meu caro João:
Releve-me o ser tão pouco estético o papel em que lhe escrevo. Mas é o que tenho à mão e eu sinto absoluta a necessidade de lhe escrever.
Neste dia de sol claro e simples, assaltou-me um tédio de tal maneira profundo que não o posso exprimir senão expondo-lhe que sinto uma mão a estrangular-me a alma.
Li hoje, pela não-sei-que-ésima vez, parte do seu livro e fez-me bem, como sempre me faz, por tão bem falar do meu mal.
Escuso de empregar o vulgar «não imagina», para lhe descrever o abismo de torpor de todo o Eu em que estou caído; sei de sobra que você imagina isso muito bem, para mal da sua felicidade.
Estou num destes momentos em que tudo perde o sabor a vida que tem e em que adoece dentro de nós o nosso modo de sentir as coisas; repare que eu digo que adoece, não as sensações, mas o modo como elas são sensações.
Estou talvez fatigando-o com isto. Desculpe-me que o faça. Sou impelido a fazê-lo.
A propósito de tédios, lembra-me perguntar-lhe uma coisa... Viu, num número do ano passado, de A Águia um trecho meu chamado Na Floresta do Alheamento? Se não viu, diga-me. Mandar-lho-ei. Tenho imenso interesse que você conheça esse trecho. É o único trecho meu publicado em que eu faço do tédio, e do sonho estéril e cansado de si próprio mesmo ao ir começar a sonhar-se, um motivo e o assunto.
Não sei se lhe agradará o estilo em que o trecho está escrito; é um estilo especialmente meu, e a aqui vários rapazes amigos, brincando, chamam «o estilo alheio», por ser naquele trecho que apareceu. E referem-se a «falarem alheio», «escrever em alheio», etc.
Aquele trecho pertence a um livro meu, de que há muitos trechos escritos mas inéditos, mas que falta ainda muito para acabar; esse livro chama-se Livro do Desassossego, por causa da inquietação e incerteza que é a sua nota predominante. No trecho publicado isso nota-se. O que é em aparência um mero sonho, ou entresonho, narrado, e — sente-se logo que se lê, e deve, se realizei bem, sentir-se através de toda a leitura — uma confissão sonhada da inutilidade e dolorosa fúria estéril de sonhar.
Tenho-lhe falado de mim demasiadamente. Queria ter agora, neste momento, ao mesmo tempo em que as estou desejando, extensas novas suas. O que tem feito? Tem escrito? E tem escrito versos?
Espero para breve notícias suas. Se me pudesse escrever, não um postal, mas uma carta...!
Como vê pelo en-tête desta carta, mudei de residência. Mudei há três dias apenas. É para aqui que me deve escrever agora.
Adeus. Um grande e fraterno abraço do seu muito e sempre seu
Fernando Pessoa
Escrita a 3 de Maio, esta carta vai para o correio a 14. Como você vê continua aquela minha [...] de atrasar mesmo aquilo que parece impossível que se atrase.
Enfim...
Livro do Desassossego. Vol.I. Fernando Pessoa. (Organização e fixação de inéditos de Teresa Sobral Cunha.) Coimbra: Presença, 1990.
- 59.João Lebre Lima publicara, em 1913, O Livro do Silêncio. Esta carta não chegou a ser enviada.