Vida e Obra
19. Sensacionismo
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O Sensacionismo começou com a amizade entre Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Provavelmente é difícil destrinçar a parte de cada um na origem do movimento e, com certeza, absolutamente inútil determiná-lo. O facto é que ambos lhe deram início.
Mas cada sensacionista digno de menção é uma personalidade à parte e, naturalmente, todos exerceram uma actividade recíproca.
Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro estão mais próximos dos simbolistas. Álvaro de Campos e Almada Negreiros são mais afins da moderna maneira de sentir e de escrever. Os outros são intermédios.
Fernando Pessoa padece de cultura clássica.
Nenhum sensacionista foi mais além do que Sá-Carneiro na expressão do que em sensacionismo se poderá chamar sentimentos coloridos. A sua imaginação — uma das mais puras na moderna literatura, pois ele excedeu Poe no conto dedutivo em A Estranha Morte do Professor Antena —corre desenfreada por entre os elementos que os sentidos lhe facultaram, e o seu sentido da cor é dos mais intensos entre os homens de letras.
Fernando Pessoa é mais puramente intelectual; a sua força reside mais na análise intelectual do sentimento e da emoção, por ele levada a uma perfeição que quase nos deixa com a respiração suspensa. Do seu drama estático, O Marinheiro, disse uma vez um leitor: «Torna o mundo exterior inteiramente irreal» e, de facto, assim é. Nada de mais remoto existe em literatura. A melhor nebulosidade e subtileza de Maeterlinck é grosseira e carnal em comparação.
José de Almada-Negreiros é mais espontâneo e rápido, mas nem por isso deixa de ser um homem de génio. Ele é mais novo do que os outros, não só em idade como também em espontaneidade e efervescência. Possui uma personalidade muito distinta — para admirar é que a tivesse adquirido tão cedo.
Luís de Montalvor é quem está mais próximo dos simbolistas. No que se refere a estilo e orientação espiritual não está muito distante de Mallarmé, o qual, não é difícil adivinhar, é, com certeza, o seu poeta favorito. Mas existem claros elementos sensacionistas na sua poesia, coisas inteiramente tiradas a Mallarmé, mais intelectualmente profundas, mais sinceramente sentidas no cérebro, para falar, de todo em todo, à sensacionista.
São, de longe, bem mais interessantes do que os cubistas e os futuristas!
Nunca desejei conhecer pessoalmente qualquer dos sensacionistas por estar persuadido de que o melhor conhecimento é impessoal.
Álvaro de Campos define-se excelentemente como sendo um Walt Whitman com um poeta grego lá dentro.
Há nele toda a pujança da sensação intelectual, emocional e física que caracterizava Whitman; mas nele verifica-se o traço precisamente oposto — um poder de construção e de desenvolvimento ordenado de um poema que nenhum poeta depois de Milton jamais alcançou. A Ode Triunfal de Álvaro de Campos, whitmanescamente caracterizada pela ausência de estrofe e de rima (e regularidade), possui uma construção e um desenvolvimento ordenado que estultifica a perfeição que Lycidas , por exemplo, pode reivindicar neste particular. A Ode Marítima que ocupa nada menos de 22 páginas de Orpheu, é uma autêntica maravilha de organização. Nenhum regimento alemão jamais possuiu a disciplina interior subjacente a essa composição, a qual, pelo seu aspecto tipográfico, quase se pode considerar um espécime de desleixo futurista. As mesmas considerações são de aplicar à magnífica Saudação a Walt Whitman no terceiro Orpheu
As mesmas considerações quase que se podem aplicar a José de Almada-Negreiros, se ele não fosse menos disciplinado e mais (...). A Cena de Ódio escrita por «J.[osé de Almada-Negreiros] um poeta sensacionista e Narciso do Egipto» (como ele se intitula a si próprio) (...).
Diz-se que possui muitas obras por publicar e algumas impublicáveis.
O sensacionista que mais publicou foi Mário de Sá-Carneiro. Nasceu em Maio de 1890 e suicidou-se em Paris a 26 de Abril de 1916. Nessa altura os jornais franceses apodaram-no de futurista, embora — e porque — ele o não fosse.
O seu grande mérito reside no conjunto dos seus contos, mas a sua extensão não permite inclui-los nesta antologia.
Mas o ponto fraco destes clássicos é, mesmo quando clássicos, não serem portugueses. Qualquer homem de génio — quando de génio se trata — poderia ter procedido assim fora de Portugal; por isso não valeu a pena fazê-lo em português. Não podemos admitir um homem a escrever a sua língua natal a não ser que tenha algo a dizer que só um homem falando essa língua pudesse dizer. O forte de Shakespeare é ele não poder ter sido senão inglês. Por isso ele escreveu em inglês e nasceu em Inglaterra. Uma coisa que pode ser dita tão bem numa língua como noutra é melhor não se dizer. É nova apenas à superfície.(?)
Os sensacionistas portugueses são originais e interessantes porque, sendo estritamente portugueses, são cosmopolitas e universais. O temperamento português é universal; esta, a sua magnífica superioridade. O acto verdadeiramente grande da História portuguesa — esse longo, cauteloso, científico período dos Descobrimentos — é o grande acto cosmopolita da História. Nele se grava o povo inteiro. Uma literatura original, tipicamente portuguesa não o pode ser porque os portugueses típicos nunca são portugueses. Há algo de americano, com a barulheira e o quotidiano omitidos, no temperamento intelectual deste povo. Ninguém como ele se apropria tão prontamente das novidades. Nenhum povo despersonaliza tão magnificamente. Essa fraqueza é a sua grande força. Esse não-regionalismo temperamental é o seu inusitado poder. É essa indefinidade de alma que o define.
Porque o facto significativo acerca dos portugueses é que eles são o povo mais civilizado da Europa. Eles nascem civilizados porque nascem aceitadores de tudo. Neles nada há do que os antigos psiquiatras costumavam chamar misoneismo, o que significa apenas ódio às coisas novas; gostam francamente de mudar e do que é novo. Não possuem elementos estáveis, como os franceses, que só fazem revoluções para exportação. Os portugueses estão sempre a fazer revoluções. Quando um português se vai deitar faz uma revolução porque o português que acorda na manhã seguinte é diferente. É precisamente um dia mais velho, um dia mais velho sem dúvida alguma. Outros povos acordam todas as manhãs no dia de ontem; o amanhã está sempre a vários anos de distância. Mas não esta tão estranha gente. Move-se tão rapidamente que deixa tudo por fazer, incluindo ir depressa. Não há nada menos ocioso do que um português. A única parte ociosa do país é a que trabalha. Daí a sua falta de evidente progresso.
No que se refere à literatura portuguesa moderna, o melhor é «virarmos a esquina» quando ela aparece. É o eco de um eco de um eco de algo que não valeu a pena dizer-se. Quando não é puro esterco, como nos romances de Abel Botelho, deveria sê-lo, para, ao menos, ser alguma coisa, como nos romances e poemas de todos os outros autores.
Toda a literatura portuguesa clássica dificilmente chega a ser interessante; até dificilmente chega a ser clássica. Pondo de parte algumas coisas de Camões que são nobres; várias outras de Antero de Quental que são grandes; um ou dois poemas de Junqueiro que valem a pena ser lidos, quanto mais não seja para vermos até que ponto ele se pode educar para além de se ter educado em Hugo; um poema de Teixeira de Pascoaes que passou o resto da vida literária a pedir desculpa em má poesia por ter escrito um dos maiores poemas de amor do mundo — se exceptuarmos isto e outras insignificâncias que são excepções precisamente por serem insignificâncias, o conjunto da literatura portuguesa dificilmente é literatura e quase nunca é portuguesa. É provençal, italiana, espanhola e francesa, ocasionalmente inglesa, em alguns, como Garrett, que sabia o francês bastante para ler más traduções francesas de poemas ingleses inferiores e acertar quando eles erram. Possui a literatura portuguesa alguma boa prosa; Vieira é um mestre em qualquer parte, embora fosse um pregador. Diz-se também que é um guia da linguagem, mas isso pode-se desculpar porque ele é um guia para Machiavelli através da sua natureza de jesuíta. Há coisas esplêndidas nos cronistas antigos, mas estes surgiram antes de Portugal ter dado conta de si, ausente por todo mundo, com todos os mares abertos aos povos que não ousaram lá ir primeiro.
Um ou dois poetas modernos ascendem ao interessante, mas já estão fatigados quando lá chegam e passam a dormir o resto das suas vidas literárias. Assim, Pascoaes, que escreveu uma «Elegia» que paira acima de The Last Ride Together, de Browning, como poema metafísico de amor, e depois deste umas tantas poesias que estão abaixo do que alguém queira sugerir e que são uma elegia à inspiração de Pascoaes.
Há uma porção de grandes poetas locais que se ressentem de não ter sido nada numa incarnação pretérita e de agirem na anamnésia disso. Dizem os astrólogos indianos que uma criança só pode nascer em certos momentos da respiração do mundo. Estes poetas e prosadores aproveitaram-se dos intervalos e preencheram-nos todos. Isto dificilmente se poderia fazer fora de Portugal, mas pode-se fazê-lo mal em Portugal. (var.: Pode-se fazer isto fora de Portugal, mas não tão bem onde Afonso Costa é um estadista e vários outros Costas povo) .
Há apenas duas coisas interessantes em Portugal — a paisagem e o Orpheu. Tudo o que está de permeio é palha podre usada, que serviu pela Europa em fora e acaba entre as duas coisas interessantes em Portugal. Por vezes estraga a paisagem pondo-lhe lá portugueses. Mas não pode estragar o Orpheu porque esse é à prova de Portugal.
Ao fim de dia e meio em Portugal dei pela paisagem; levei ano e meio a dar pelo Orpheu. É verdade que desembarquei em Portugal, vindo de Inglaterra, na. mesma altura em que Orpheu chegou do Olimpo. Mas isso não importa e é apenas uma feliz coincidência que eu aceito gratamente
Se existisse qualquer instinto do sensato em moderna literatura, eu começaria pela paisagem e terminaria pelo Orpheu. Mas, graças a Deus, não há nenhum instinto do sensato em moderna literatura, por isso deixo de parte a paisagem e começo e termino pelo Orpheu.
A paisagem está lá sempre e pode ser contemplada por quem queira e possa. O Orpheu lá está, mas dificilmente pode ser lido por toda a gente. Quando muito poderá ser lido por muito poucos. Mas vale a pena fazê-lo. Vale a pena aprender português para o ler. Não é que lá haja algum Goethe ou Shakespeare. Mas existe o suficiente para compensar não haver lá nem Goethe nem Shakespeare. O Orpheu é a soma e a síntese de todos os movimentos literários modernos; eis porque é mais merecedor de que se escreva sobre ele do que sobre a paisagem que é apenas a ausência das pessoas que nela vivem.
O Orpheu é uma revista trimestral da qual, embora tenha começado há ano e meio, só se publicaram três números. Isto nada significa excepto que nada significa. Cada número tem cerca de oitenta páginas e poucos colaboradores. Alguns figuram nos três números, outros alternam-se. São extraordinariamente variados atendendo ao seu reduzido número e ao facto de todos serem muito modernos. Cada número acrescenta um novo interesse a este maravilhoso movimento sintético. Aguardo ansiosamente o quarto número. Pode ser disparate, embora seja verdade, dizer que há mais imprevisto e interesse em Orpheu do que na presente guerra.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
- 148.Trad: Tomás Kim