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Álvaro de Campos

7. Sensacionismo

Descobre que afinal a melhor maneira de viajar é sentir.
[ilustração: Mário Eloy (1900-1951). Lissabon. 1930-31. Col. F.C.G., Lisboa.
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«Fui para a cama com todos os sentimentos.»

A PASSAGEM DAS HORAS

Sentir tudo de todas as maneiras,

Ter todas as opiniões,

Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,

Desagradar a si-próprio pela plena liberalidade de espírito,

E amar as coisas como Deus.

Eu, que sou mais irmão de uma árvore que de um operário,

Eu, que sinto mais a dor suposta do mar ao bater na praia

Que a dor real das crianças em quem batem

(Ah, como isto deve ser falso, pobres crianças em quem batem —

E porque é que as minhas sensações se revezam tão depressa?)

Eu, enfim, que sou um diálogo contínuo

Um falar-alto incompreensível, alta-noite na torre,

Quando os sinos oscilam vagamente sem que mão lhes toque

E faz pena saber que há vida que viver amanhã.

Eu, enfim, literalmente eu,

E eu metaforicamente também,

Eu, o poeta sensacionista, enviado do Acaso

Às leis irrepreensíveis da Vida,

Eu, o fumador de cigarros por profissão adequada,

O indivíduo que fuma ópio, que toma absinto, mas que, enfim,

Prefere pensar em fumar ópio a fumá-lo

E acha mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo...

Eu, este degenerado superior sem arquivos na alma,

Sem personalidade com valor declarado,

Eu, o investigador solene das coisas fúteis,

era capaz de ir viver na Sibéria só por embirrar com isso

E que acho que não faz mal não ligar importância à pátria

Porque não tenho raiz, como uma árvore, e portanto não tenho raiz...

Eu, que tantas vezes me sinto tão real como uma metáfora,

Como uma frase escrita por um doente no livro da rapariga que encontrou no terraço,

Ou uma partida de xadrez no convés dum transatlântico,

Eu, a ama que empurra os perambulators em todos os jardins públicos,

Eu, o polícia que a olha, parado para trás na álea,

Eu, a criança no carro, que acena à sua inconsciência lúcida com um colar com guizos,

Eu, a paisagem por detrás disto tudo, a paz citadina

Coada através das árvores do jardim público,

Eu, o que os espera a todos em casa,

Eu, o que eles encontram na rua

Eu, o que eles não sabem de si-próprios,

Eu, aquela coisa em que estás pensando e te marca esse sorriso,

Eu, o contraditório, o fictício, o aranzel, a espuma,

O cartaz posto agora, as ancas da francesa, o olhar do padre,

O lugar onde se encontram as duas ruas e os chauffeurs dormem contra os carros,

A cicatriz do sargento mal-encarado,

O sebo na gola do explicador doente que volta para casa,

A chávena que era por onde o pequenito que morreu bebia sempre,

E tem uma falha na asa (e tudo isto cabe num coração de mãe e enche-o)...

Eu, o ditado de francês da pequenita que mexe nas ligas,

Eu, os pés que se tocam por baixo do bridge sob o lustre,

Eu, a carta escondida, o calor do lenço, a sacada com a janela entreaberta,

O portão de serviço onde a criada fala com os desejos do primo,

O sacana do José que prometeu vir e não veio

E a gente tinha uma partida para lhe fazer...

Eu, tudo isto, e além disto o resto do mundo...

Tanta coisa, as portas que se abrem, e a razão porque elas se abrem,

E as coisas que já fizeram as mãos que abrem as portas...

Eu, a infelicidade-nata de todas as expressões,

A impossibilidade de exprimir todos os sentimentos,

Sem que haja uma lápide no cemitério para o irmão de tudo isto,

E o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer qualquer coisa...

Sim, eu, o engenheiro naval que sou supersticioso como uma camponesa madrinha,

E uso o monóculo para não parecer igual à ideia real que faço de mim,

Que levo às vezes três horas a vestir-me e nem por isso acho isso natural,

Mas acho-o metafísico e se me batem à porta zango-me,

Não tanto por me interromperem a gravata como por ficar sabendo que há a vida...

Sim, enfim, eu o destinatário das cartas lacradas,

O baú das iniciais gastas,

A intonação das vozes que nunca ouviremos mais —

Deus guarda isso tudo no Mistério, e às vezes sentimo-lo

E a vida pesa de repente e faz muito frio mais perto que o corpo.

A Brígida prima da minha tia,

O general em que elas falavam — general quando elas eram pequenas,

E a vida era guerra civil a todas as esquinas...

Vive le mélodrame où Margot a pleuré!

Caem folhas secas no chão irregularmente,

Mas o facto é que sempre é outono no outono,

E o inverno vem depois fatalmente,

E há só um caminho para a vida, que é a vida...

Esse velho insignificante, mas que ainda conheceu os românticos

Esse opúsculo político do tempo das revoluções constitucionais,

E a dor que tudo isso deixa, sem que se saiba a razão

Nem haja para chorar tudo mais razão que senti-lo.

Todos os amantes beijaram-se na minha alma,

Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim

Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro,

Atravessaram a rua, ao meu braço todos os velhos e os doentes,

E houve um segredo que me disseram todos os assassinos.

(Aquela cujo sorriso sugere a paz que eu não tenho,

Em cujo baixar-de-olhos há uma paisagem da Holanda,

Com as cabeças femininas coiffées de lin

E todo o esforço quotidiano de um povo pacífico e limpo...

Aquela que é o anel deixado em cima da cómoda,

E a fita entalada com o fechar da gaveta,

Fita cor-de-rosa, não gosto da cor mas da fita entalada,

Assim como não gosto da vida, mas gosto de senti-la...

Dormir como um cão corrido no caminho, ao sol,

Definitivamente para todo o resto do Universo,

E que os carros me passem por cima)

Fui para a cama com todos os sentimentos,

Fui souteneur de todas as emoções,

Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,

Troquei olhares com todos os motivos de agir,

Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,

Febre imensa das horas!

Angústia da forja das emoções!

Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,

A cadela a uivar de noite,

O tanque da quinta a passear à roda da minha insónia

O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa,

A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros,

Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo,

Ó fome abstracta das coisas, cio impotente dos momentos,

Orgia intelectual de sentir a vida!

Obter tudo por suficiência divina —

As vésperas, os consentimentos, os avisos,

As coisas belas da vida —

O talento, a virtude, a impunidade,

A tendência para acompanhar os outros a casa,

A situação de passageiro,

A conveniência em embarcar lá para ter lugar,

E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase,

E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.

Poder rir, rir, rir despejadamente,

Rir como um copo entornado,

Absolutamente doido só por sentir,

Absolutamente roto por me roçar contra as coisas,

Ferido na boca por morder coisas,

Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas,

E depois dêem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida.

1916

Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.

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1ª versão: Poesias de Álvaro de Campos . Fernando Pessoa. (Nota editorial e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1944.