Vida e Obra
14. Solidão
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Meu querido Mário Beirão:
Deu-me um grande prazer a sua carta de 25, que há dias recebi. Tinha muita pena, é certo, que v. não me tivesse escrito ainda, mas, como eu também lhe não tinha escrito, não me cabia o direito objectivo de ter essa pena. O pior para mim é que eu, por certo, sinto mais a falta de correspondência que v. Estou, quanto a companhia espiritual e imediata, quase só, se não só em absoluto... Não sou das pessoas menos acompanháveis por si próprias, mas ainda assim — e de vez em quando aborreço-me de não andar senão comigo.
Por isto a sua carta, ainda que breve, me causou uma grande alegria.
Estou actualmente atravessando uma daquelas crises a que, quando se dão na agricultura, se costuma chamar «crises de abundância».
Tenho a alma num estado de rapidez ideativa tão intenso que preciso fazer da minha atenção um caderno de apontamentos, e, ainda assim, tantas são as folhas que tenho a encher, que algumas se perdem, por elas serem tantas, e outras se não podem ler depois, por com mais que muita pressa escritas. As ideias que perco causam-me uma tortura imensa, sobrevivem-se nessa tortura, escuramente outras. V. dificilmente imaginará que Rua do Arsenal, em matéria de movimento tem sido a minha própria cabeça. Versos ingleses, portugueses, raciocínios, temas, projectos, fragmentos de coisas que não sei como começam ou acabam, relâmpagos de críticas, murmúrios de metafísicas... Toda uma literatura, meu caro Mário, que vai da bruma — para a bruma — pela bruma...
Destaco de coisas psíquicas de que tenho sido o lugar, o seguinte fenómeno que julgo curioso. V. sabe, creio, que de várias fobias que tive guardo unicamente a assaz infantil mas terrivelmente torturadora fobia das trovoadas. O outro dia o céu ameaçava chuva e eu ia a caminho de casa e por tarde não havia carros. Afinal não houve trovoada, mas esteve iminente e começou a chover — aqueles pingos graves, quentes e espaçados — ia eu ainda a meio do caminho entre a Baixa e minha casa. Atirei-me para casa com o andar mais próximo do correr que pude achar, com a tortura mental que v. calcula, perturbadíssimo, confrangido eu todo. E neste estado de espírito encontro-me a compor um soneto — acabei-o uns passos antes de chegar ao portão de minha casa —, a compor um soneto de uma tristeza suave, calma, que parece escrito por um crepúsculo de céu limpo. E o soneto é não só calmo, mas também mais ligado e conexo que algumas coisas que tenho escrito. O fenómeno curioso do desdobramento é coisa que habitualmente tenho, mas nunca o tinha sentido neste grau de intensidade. Como prova do género calmo do soneto, aqui lho transcrevo:
ABDICAÇÃO
Toma-me, ó Noite Eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho... Eu sou um Rei
Que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei,
E meu ceptro e coroa — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços.
Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas dum tinir tão fútil —
Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a Realeza, corpo e alma
E regressei à Noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.
Dê saudades minhas ao Vila-Moura e escreva-me breve e o mais extensamente que puder.
Um grande abraço do seu dedicadíssimo
FERNANDO PESSOA
Rua Passos Manuel, 24, 3.º E.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
- 29.1ª publ. in Diário Popular, 28-11-1957