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Vida e Obra

17. Missão

Sente que o sentido da sua vida é «ter uma acção sobre a humanidade».
[ilustração: Fernando Pessoa na época do Orpheu.
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Lisboa, 19 de Janeiro de 1915.

               Meu querido Amigo:

Há tempos que lhe ando prometendo uma extensa carta. Não sei mesmo se, especificando, lhe não falei numa carta de género psicológico, a meu próprio respeito. Em todo o caso, é disso que se trata.

Eu ando há muito - desde que lhe prometi esta carta — com vontade de lhe falar intimamente e fraternalmente do meu «caso», da natureza da crise psíquica que há tempos venho atravessando. Apesar da minha reserva, eu sinto a necessidade de falar nisto a alguém, e não pode ser a outro senão a você — isto porque só você, de entre todos quantos eu conheço, possui de mim uma noção precisamente no nível da minha realidade espiritual. Dá-se esta sua capacidade para me compreender porque você é, como eu, fundamentalmente um espírito religioso; e, dos que de perto literariamente me cercam, você sabe bem que (por superiores que sejam como artistas) como almas, propriamente, não contam, não tendo nenhum deles a consciência (que em mim é quotidiana) da terrível importância, da Vida, essa consciência que nos impossibilita de fazer arte meramente pela arte, e sem a consciência de um dever a cumprir para com nós-próprios e para com a humanidade.

Nesta explicação aparentemente preliminar vai já exposta uma grande parte do problema. Não sei como lho hei-de expor ordenadamente; de modo perfeitamente lúcido. Mas, como isto é uma carta, eu irei expondo conforme possa; e você ordenará, em seu espírito, depois, os dispersos e alterados elementos.

A minha crise é do género das grandes crises psíquicas, que são sempre crises de incompatibilidade, quando não com os outros, por certo com nós-próprios. A minha, agora, não é de incompatibilidade comigo próprio; a minha, gradualmente adquirida, auto disciplina, tem conseguido unificar dentro de mim quantos divergentes elementos do meu carácter eram susceptíveis de harmonização. Ainda tenho muito a empreender dentro do meu espírito; disto ainda muito de uma unificação como eu a quero. Mas, como disse, não é dessa banda que sopra o vento do meu desconsolo actual.

A crise de incompatibilidade com os outros — não, entenda-se desde já, uma incompatibilidade violenta, como a que resultasse de divergências declaradas, nítidas, de ambas as partes. Trata-se de outra coisa. A incompatibilidade é sentida por mim, dentro de mim, e é comigo que está o peso todo da minha divergência de aqueles que me cercam. O facto de eu estar agora vivendo só, por não ter aqui família próxima (minha tia, em cuja casa eu estava, está na Suíça, onde foi ficar com a filha, que casou há pouco com um rapaz estudante, pensionista do Estado) vem agravar este estado de espírito, por me deixar a nu com a minha alma, sem afeições e interesses familiares próximos a desviar de mim a minha atenção.

Temos pois que vivo há meses numa continua sensação de incompatibilidade profunda com as criaturas que me cercam - mesmo com as próximas, amigos, literários é claro, porque os outros não são indivíduos com quem eu tenha que poder ter intimidade espiritual e por isso — como, em matéria de relações sociais, me dou bem com toda a gente, dou-me bem com eles.

Em ninguém que me cerca eu encontro uma atitude para com a vida que bata certo com a minha íntima sensibilidade, com as minhas aspirações e ambições, com tudo quanto constitui o fundamental e o essencial do meu íntimo ser espiritual. Encontro, sim, quem esteja de acordo com actividades literárias que são apenas dos arredores da minha sinceridade. E isso não me basta. De modo que, à minha sensibilidade cada vez mais profunda, e à minha consciência cada vez maior da terrível e religiosa missão que todo o homem de génio recebe de Deus com o seu génio, tudo quanto é futilidade literária, mera-arte, vai gradualmente soando cada vez mais a oco e a repugnante. Pouco a pouco, mas seguramente, no divino cumprimento íntimo de uma evolução cujos fins me são ocultos, tenho vindo erguendo os meus propósitos e as minhas ambições cada vez mais à altura daquelas qualidades que recebi. Ter uma acção sobre a humanidade, contribuir com todo o poder do meu esforço para a civilização vêm-se-me tornando os graves e pesados fins da minha vida. E, assim, fazer arte parece-me cada vez mais importante coisa, mais terrível missão — dever a cumprir arduamente, monasticamente, sem desviar os olhos do fim criador-de-civilização de toda a obra artística. E por isso o meu próprio conceito puramente estético da arte subiu e dificultou-se; exijo agora de mim muita mais perfeição e elaboração cuidada. Fazer arte rapidamente, ainda que bem, parece-me pouco. Devo à missão que me sinto uma perfeição absoluta no realizado, uma seriedade integral no escrito.

Passou de mim a ambição grosseira de brilhar por brilhar, e essa outra, grosseiríssima, e de um plebeísmo artístico insuportável, de querer épater. Não me agarro já à ideia do lançamento do Interseccionismo com ardor ou entusiasmo algum. É um ponto que neste momento analiso e reanaliso a sós comigo. Mas, se decidir lançar essa quase-blague, será já, não a quase-blague que seria, mas outra coisa. Não publicarei o Manifesto «escandaloso». O outro — aquele dos gráficos — talvez. A blague só um momento, passageiramente, a um mórbido período transitório, de grosseria (felizmente incaracterístico), me pôde agradar ou atrair. Será talvez útil — penso — lançar essa corrente como corrente, mas não com fins meramente artísticos, mas, pensando esse acto a fundo, como uma série de ideias que urge atirar para a publicidade para que possam agir sobre o psiquismo nacional, que precisa trabalhado e percorrido em todas as direcções por novas correntes de ideias e emoções que nos arranquem à nossa estagnação. Porque a ideia patriótica, sempre mais ou menos presente nos meus propósitos, avulta agora em mim; e não penso em fazer arte que não medite fazê-lo para erguer alto o nome português através do que eu consiga realizar. É uma consequência de encarar a sério a arte e a vida. Outra atitude não pode ter para com a sua própria noção-do-dever quem olha religiosamente para o espectáculo triste e misterioso do Mundo.

Tenho-lhe explicado tudo isto muito mal. Quase que me tenta a ideia de rasgar esta carta onde, até, pouca justiça fiz a mim próprio. Mas você deve compreender o que eu sinto, e, creio, regozijar comigo, através da sua amizade, por esta minha evolução ascendente dentro de mim.

Regresso a mim. Alguns anos andei viajando a colher maneiras-de-sentir. Agora, tendo visto tudo e sentido tudo, tenho o dever de me fechar em casa no meu espírito e trabalhar, quanto possa e em tudo quanto possa, para o progresso da civilização e o alargamento da consciência da humanidade. Oxalá me [não] desvie disto o meu perigoso feitio demasiado multilateral, adaptável a tudo, sempre alheio a si próprio e sem nexo dentro de si.

Mantenho, é claro, o meu propósito de lançar pseudonicamente a obra Caeiro-Reis-Campos. Isso é toda uma literatura que eu criei e vivi, que é sincera, porque é sentida, e que constitui uma corrente com influência possível, benéfica incontestavelmente, nas almas dos outros. O que eu chamo literatura insincera não é aquela análoga à do Alberto Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos (o seu homem, este último, o da poesia sobre a tarde e a noite). Isso é sentido na pessoa de outro; é escrito dramaticamente, mas é sincero (no meu grave sentido da palavra) como é sincero o que diz o Rei Lear, que não é Shakespeare, mas uma criação dele. Chamo insinceras às coisas feitas para fazer pasmar, e às coisas, também — repare nisto, que é importante — que não contêm uma fundamental ideia metafísica, isto é, por onde não passa, ainda que como um vento uma noção da gravidade e do mistério da Vida. Por isso é sério tudo o que escrevi sob os nomes de Caeiro, Reis, Álvaro de Campos. Em qualquer destes pus um profundo conceito da vida, diverso em todos três, mas em todos gravemente atento à importância misteriosa de existir. E por isso não são sérios os Paúis, nem seria o Manifesto interseccionista de que uma vez lhe li trechos desconexos. Em qualquer destas composições a minha atitude para com o público é a de um palhaço. Hoje sinto-me afastado de achar graça a esse género de atitude.

Que pouco lúcido e explícito tudo isto! Mas eu tenho que lhe escrever tudo rapidamente; é hoje o dia 19 e eu não quero deixar de conversar com o seu espírito sobre estas coisas. Como já disse, você é o único dos meus amigos que tem, a par daquela apreciação das minhas qualidades que lhe permitirá não julgar esta carta um documento de megalómano, a profunda religiosidade, e a convicção do doloroso enigma da Vida, para simpatizar comigo em tudo isto.

Escuso agora de lhe explicar o quanto esta atitude — que eu, aliás, não revelo, por várias razões, desde a de ser uma coisa íntima até à de ser incompreensível às sensibilidades dos que me cercam — me incompatibiliza surdamente com os que estão em meu redor. Não é uma incompatibilidade violenta, disse; mas é uma impaciência para com todos quantos fazem arte para vários fins inferiores, como quem brinca, ou como quem se diverte, ou como quem arranja uma sala com gosto — género de arte este que dá bem o que eu quero exprimir, porque não tem Além nem outro propósito que o, por assim dizer, decorativamente artístico. E daí a minha «crise» toda. Não é crise para eu me lamentar. É a de se encontrar só quem se adiantou de mais aos companheiros de viagem — desta viagem que os outros fazem para se distrair e acho tão grave, tão cheia de termos de pensar no seu fim, de reflectir no aqui diremos ao Desconhecido para cuja casa a nossa inconsciência guia os nossos passos... Viagem essa, meu querido Amigo, que é entre almas e estrelas, pela Floresta dos Pavores... e Deus, fim da estrada infinita, à espera no silêncio da Sua grandeza...

Bem ou mal — mal, por certo — expus-lhe tudo. Sinto-me contente por lhe ter falado assim, e porque sei que o seu espírito acolhe com simpatia e amizade estas minhas tristezas de altura. Tudo isto, escuso dizer-lhe, é segredo... De resto, a quem o poderia você contar?...

Termino, a tempo felizmente. Mande-me quando puder, cuidadosamente copiados dos originais, os inéditos de Antero de que me fala. Pode ser que, tendo-os aqui, seja conveniente publicá-los nalguma parte. Haverá autorização para isso? É bom saber-se.

Mando-lhe alguns versos meus... Leia-os e guarde-os para si... A seu Pai, se quiser, pode lê-los, mas não espalhe porque são inéditos. Amo especialmente a última poesia, a da Ceifeira onde consegui dar a nota paúlica em linguagem simples. Amo-me por ter escrito

               «Ah, poder ser tu, sendo eu!

                Ter a tua alegre inconsciência

                E a consciência disso!...

e enfim, essa poesia toda.

Tenho escrito mais, mas mando o que está completo e é mais fácil copiar. É pena que vá tudo em letra de máquina, que torna a poesia pouco poética, mas assim é mais rápido e nítido.

Escreva-me sempre, meu caro Côrtes-Rodrigues. Dê cumprimentos meus a seu Pai e receba um grande e fraterno abraço do seu

               Fernando Pessoa

P.S. - Vi há dias uma esplêndida composição — «um túmulo de Wagner — do Norberto Corrêa. Bela deveras. Você gostaria imenso de a conhecer.

                F.P.

P.S. - Não tenho tempo para reler esta carta. Naturalmente faltam palavras aqui e acolá, dada a rapidez com que eu a escrevi. E a letra em altura nenhuma será muito legível. Você desculpe.

               F.P.

PAÚIS

Paúis que roçarem ânsias pela minha alma em ouro...

Dobre longínquo d'Outros Sinos... Empalidece o louro

Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minha por minha alma...

Tão sempre a mesma, a Hora!... Balouçar de cimos de palma!...

Silêncio da parte inferior das folhas, outono delgado

D'um canto de vaga ave... Azul esquecidos em estagnado...

Ó que mudo grito de ânsia põe garras na Hora!...

Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora?...

Estendo as mãos para Além, mas no estender delas já vejo

Que não é aquilo que quero aquilo que desejo...

Címbalos de imperfeição... Ó tão antiguidade

A hora expulsa de si-Tempo!... Onda de recuo que invade

O meu abandonar-me a mim-próprio até desfalecer

E recordar tanto o eu presente que me sinto esquecer...

Fluido de auréola transparente de Foi, oco de ter-se...

O mistério sabe-me a eu ser outro... Luar sobre o não conter-se...

A sentinela é hirta, a lança que finca no chão

É mais alta que ela... P'ra que é tudo isto... Dia chão...

Trepadeiras de despropósito lambendo de Hora os aléns!

Horizontes fechando os olhos ao espaço em que são elos de erro!

Fanfarras de ópios de silêncios futuros!... Longes trens!...

Portões vistos longe, através das árvores, tão de ferro!...

       29 Março 1913.

II

Elfos ou gnomos tocam?...

Roçam nos pinheirais

Sombras e bafos leves

De ritmos musicais...

Ondulam como em voltas

De estradas não sei onde,

Ou como alguém que entre árvores

Ora se mostra ou esconde...

Forma longínqua e incerta

Do que eu nunca terei...

Mal ouço e quase choro...

Porque choro não sei...

Tão ténue melodia

Que mal sei se ela existe

Ou se é só o crepúsculo,

Os pinhais e eu estar triste...

Mas cessa, como uma brisa,

Esquece a forma aos seus ais,

E agora não há mais música

Do que a dos pinheirais...

       25-IX-1914.

III

Serena voz imperfeita, eleita

Para falar aos deuses mortos —

A janela que falta ao teu palácio deita

Para o Porto todos os portos.

Faísca da ideia de uma voz soando

Lírios nas mãos das princesas sonhadas

Eu sou a maré de pensar-te, orlando

A Enseada todas as enseadas.

Brumas marinhas esquinas de sonho...

Janelas dando para Tédio os charcos

E eu fito o meu Fim que me olha, tristonho,

Do convés do Barco todos os barcos...

       6-X-1914.

IV

Como a noite é longa!

Toda a noite é assim...

Senta-te, ama, perto

Do leito onde esperto.

Vem pr'ao pé de mim...

Amei tanta coisa...

Hoje nada existe.

Aqui ao pé da cama

Canta-me, minha ama,

Uma canção triste.

Era uma princesa

Que amou... Já não sei...

Como estou esquecido!

Canta-me ao ouvido

E adormecerei...

Que é feito de tudo?

Que fiz eu de mim?

Deixa-me dormir,

Dormir a sorrir

E seja isto o fim.

4-XI-1914.

V

Bate a luz no cimo

Da montanha, vê...

Sem querer, eu cismo

Mas não sei em quê...

Não sei que perdi

Ou que não achei...

Vida que vivi,

Que mal eu a amei!...

Hoje quero tanto

Que o não posso ter.

De manhã há o pranto

E ao anoitecer.

Tomara eu ter jeito

Para ser feliz...

Como o mundo é estreito,

E o pouco que eu quis!

Vai morrendo a luz

No alto da montanha...

Como um rio a flux

A minha alma banha.

Mas não me acarinha,

Não me acalma nada...

Pobre criancinha

Perdida na estrada!...

4-XI-1914.

VI

Vai redonda e alta

A lua. Que dor

É em mim um amor?...

Não sei que me falta...

Não sei o que quero.

Nem posso sonhá-lo...

Como o luar é ralo

No chão vago e austero!...

Ponho-me a sorrir

P'ra a ideia de mim...

E tão triste, assim

Como quem está a ouvir

Uma voz que o chama

Mas não sabe d'onde

(Voz que em si se esconde)

E Só a ela ama...

E tudo isto é o luar

E a minha dor

Tornado exterior

Ao meu meditar...

Que desassossego!

Que inquieta ilusão!

E esta sensação

Oca, de ser cego

No meu pensamento,

Na rainha vontade...

Ah, a suavidade

Do luar sem tormento

Batendo na alma

De quem só sentisse

O luar, e existisse

Só p'ra a sua calma.

4-XI-1914.

VII

Saber? Que sei eu?

Pensar é descrer.

— Leve e azul é o céu —

Tudo é tão difícil

De compreender!...

A ciência, uma fada

Num conto de louco...

— A luz é lavada —

Como o que nós vemos

É nítido e pouco!

Que sei eu que abrande

Meu anseio fundo?

Ó céu real e grande,

Não saber o modo

De pensar o mundo!

4-XI-1914.

VIII

Sopra de mais o vento

Para eu poder descansar...

Há no meu pensamento

Qualquer coisa que vai parar...

Talvez essa coisa da alma

Que acha real a vida...

Talvez esta coisa calma

Que me faz a alma vivida...

Sopra um vento excessivo...

Tenho medo de pensar...

O meu mistério eu avivo

Se me perco a meditar.

Vento que passa e esquece,

Poeira que se ergue e cai...

Ai de mim se eu pudesse

Saber o que em mim vai!

5-XI-1914.

IX

Chove?... Nenhuma chuva cai...

Então onde é que eu sinto um dia

Em que o ruído da chuva atrai

A minha inútil agonia?

Onde é que chove, que eu o ouço?

Onde é que é triste, ó claro céu?

Eu quero sorrir-te, e não posso,

Ó céu azul, chamar-te meu...

E o escuro ruído da chuva

É constante em meu pensamento.

Meu ser é a invisível curva

Traçada pelo som do vento...

E eis que ante o sol e o azul do dia,

Como se a hora me estorvasse,

Eu sofro... E a luz e a sua alegria

Cai aos meus pés como um disfarce.

Ah, na minha alma sempre chove.

Há sempre escuro dentro em mim.

Se escuto, alguém dentro em mim ouve

A chuva, como a voz de um fim ...

Quando é que eu serei da tua cor,

Do teu plácido e azul encanto,

Ó claro dia exterior,

Ó céu mais útil que o meu pranto?

1-XII-1914.

X

Ameaçou chuva. E a negra

Nuvem passou sem mais...

Todo o meu ser se alegra

Em alegrias iguais.

Nuvem que passa... Céu

Que fica e nada diz...

Vazio azul sem véu

Sobre a terra feliz...

E a terra é verde, verde...

Porque então minha vista

Por meus sonhos se perde?

De que é que a minha alma dista?

XI

Ela canta, pobre ceifeira,

Julgando-se feliz talvez...

Canta e ceifa, e a sua voz cheia

De alegre e anónima viuvez

Flutua como um canto de ave

No ar limpo como um limiar,

E há curvas no enredo suave

Do som que ela tem a cantar...

Ouvi-la alegra e entristece...

Na sua voz há o campo e a lida,

E canta como se tivesse

Mais razões p'ra cantar que a vida...

E com tão nítida pureza

A sua voz entra no azul

Que em nós sorri quanto é tristeza

E a vida sabe a amor e a sul!

Canta!... Arde-me o coração...

O que em mim ouve está chorando...

Derrama no meu peito vão

A tua incerteza voz ondeando...

Canta e arrasta-me p'ra ti,

P'ra o centro ignoto da tua alma,

E que um momento eu sinta em mim

O eco da tua alada calma...

Ah! poder ser tu, sendo eu!

Ter a tua alegre inconsciência

E a consciência disso! Ó céu,

Ó campo, ó canção,... a ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve...

Entrai por mim dentro, tornai

Minha alma a vossa sombra leve...

Depois, levando-me, passai...

XII

Meu pensamento é um rio subterrâneo.

Para que terras vai e d'onde vem?

Não sei... na noite em que o meu ser o tem

Emerge dele um ruído subitâneo

De origens no Mistério extraviadas

De eu compreendê-las..., misteriosas fontes

Habitando a distância de ermos montes

Onde os momentos são a Deus chegados...

De vez em quando luze em minha mágoa,

Como um farol num mar desconhecido,

Um movimento de correr, perdido

Em mim, um pálido soluço de água...

E eu relembro de tempos mais antigos

Que a minha consciência da ilusão

Águas divinas percorrendo o chão

De verdores uníssonos e amigos,

E a ideia de uma Pátria anterior

À forma consciente do meu ser

Dói-me no que desejo, e vem bater

Como uma onda de encontro à minha dor.

Escuto-o... Ao longe, no meu vago tacto

Da minha alma, perdido som incerto,

Como um eterno rio indescoberto,

Mais que a ideia de rio certo e abstracto...

E p'ra onde é que ele vai, que se extravia

Do meu ouvi-lo? A que cavernas desce?

Em que frios de Assombro é que arrefece?

De que névoas soturnas se anuvia?

Não sei... Eu perco-o... E outra vez regressa

A luz e a cor do mundo claro e actual,

E na interior distância do meu Real

Como se a alma acabasse, o rio cessa...

19-1-1915

Cartas de Fernando Pessoa a Armando Côrtes-Rodrigues.

(Introdução de Joel Serrão.)Lisboa: Confluência, 1944 (3.ª ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1985).

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