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Fernando Pessoa

27. Cansaço

Da vida desperdiçada sobra o cansaço de sentir e pensar.
[ilustração: António Areal (1934-1978). Desenho (Praça do Comércio). 1955. Col. FCG, Lisboa.
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«Acumulei em mim um milhão difuso de vidas, mas nunca encontrei parceiro.»

Não venhas sentar-te à minha frente, nem a meu lado;

        Não venhas falar, nem sorrir.

Estou cansado de tudo, estou cansado

        E quero só dormir.

Dormir até acordado, sonhando

        Ou até sem sonhar,

Mas envolto num vago abandono brando

        A não ter que pensar.

Nunca soube querer, nunca soube sentir, até

        Pensar não foi certo em mim.

Deitei fora entre ortigas o que era a minha fé,

        Escrevi numa página em branco, «Fim».

As princesas incógnitas ficaram desconhecidas,

        Os tronos prometidos não tiveram carpinteiro

Acumulei em mim um milhão difuso de vidas,

        Mas nunca encontrei parceiro.

Por isso, se vieres, não te sentes a meu lado, nem fales,

        Só quero dormir, uma morte que seja

Uma coisa que me não rale nem com que tu te rales —

        Que ninguém deseja nem não deseja.

Pus o meu Deus no prego. Embrulhei em papel pardo

        As esperanças e ambições que tive,

E hoje sou apenas um suicídio tardo,

        Um desejo de dormir que ainda vive.

Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,

        Como um barco abandonado,

Que naufraga sozinho entre as trevas e a bruma

        Sem se lhe saber o passado.

E o comandante do navio que segue deveras

        Entrevê na distância do mar

O fim do último representante das galeras,

        Que não sabia nadar.

28-8-1927

Poesias Inéditas (1919-1930). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990).

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